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João de Deus: Cura e Crime

Terra em Transe

Por João Lanari Bo

Netflix

João de Deus: Cura e Crime

“João de Deus: Cura e Crime”, a minissérie da Netflix, errou o alvo por um dia: no final do quarto e último episódio, aparece uma cartela: “João de Deus segue em prisão domiciliar. O Ministério Público apresentou um recurso pedindo que ele volte ao regime fechado”. Mas no dia seguinte à estreia do programa, 26 de agosto último, João foi novamente preso em Anápolis, acusado de “estupro de vulnerável” – saiu do conforto abastado do seu lar e voltou para a cadeia. A defesa protestou, alegando que a decisão da comarca de Abadiânia “atropelou conscientemente a outra decisão” que havia concedido prisão domiciliar humanitária para João Teixeira de Faria. A minissérie, mais uma no inferno midiático em torno da persona de João de Deus, atualiza o loop infinito que sugere a narrativa desse predador sexual travestido de médium. O Ministério Público de Goiás já recebeu mais de 300 denúncias de crimes sexuais: ele sempre negou as acusações. Até agora, foi condenado a 65 anos de prisão, em apenas três processos que já possuem sentença, punido pelos fatos cometidos contra 10 mulheres. Em juízo, restam 12 denúncias, as quais envolvem 56 mulheres, que ainda aguardam o julgamento.

Ó sol, p’ra te dizer como te odeio

Os raios que me lembram de que alturas

Caí, p’ra ti alturas de vertigens

‘Té que avidez e orgulho me abateram

Em guerra no Céu contra o Rei sem par.

(extraído de “Paraíso Perdido”, John Milton, tradução de Daniel Jonas)

Que demônio é esse que habita a alma de João de Deus, ou João Teixeira de Faria? O poema de John Milton, publicado em 1667, narra as penas dos Anjos caídos após a rebelião no paraíso, o ardil de Satanás para fazer Adão e Eva comerem o fruto proibido da árvore do Conhecimento, e a subsequente queda do homem. Anjo caído: a rebelião foi um fracasso, Satanás começa a sentir as dores do arrependimento pelo que perdeu, e reconhece que o orgulho e a ambição o trouxeram ao estado atual. Em “João de Deus: Cura e Crime”, a queda de João é lenta, agoniante, submetida à linguagem documental que exige imagens e depoimentos, índices de verossimilhança dessa loucura que aconteceu em Abadiânia. Afinal, o que aconteceu? Um representante da razão instituída, Luiz Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, um dos corajosos que não hesita em se opor à irracionalidade do poder atual, disse ao Diário da Manhã, de Goiânia:

Eu o conheci (João de Deus) por intermédio de um grande amigo, Carlos Ayres Britto, que o levou até minha casa numa ocasião em que eu estava doente. Foi quando nos tornamos amigos… Se o João me convida para seu aniversário, não poderia deixar de vir abraçá-lo pessoalmente.

A queda de um Anjo é, por definição, enigmática para nós, pobres mortais na esfera terráquea da vida. Como pode ser que a pulsão sexual incomensurável de João, exercida em um cenário carregado de transes e alucinações, tenha demorado tanto para vir à público? E porque tantos ficaram cegos diante dessa ignomínia? em 2012, a corajosa (esta sim, corajosa) promotora de Abadiânia recebeu uma denúncia: “Com o fito de satisfazer sua lascívia, o denunciado acariciou os seios, barriga, nádegas e virilha da vítima. Não satisfeito, o denunciado segurou a mão da vítima, por cima da roupa, sobre seu órgão genital e começou a movimentá-la para cima e para baixo em movimentos constantes, enquanto afirmava que ela estava recebendo ‘o espírito’ e que iria ser curada”. O processo correu em segredo de justiça, ela fez o que pôde, mas João de Deus foi inocentado. Com o passar dos anos, o dique rompeu e as acusações explodiram – juridicamente, o que o aguarda é uma no end story de processos, movidos por um conjunto de sobreviventes motivadas e inflexíveis. Milton, ainda:

Aonde vá o inferno vai. Eu sou

O inferno. E no fundo mais fundo

De espera que corrói sempre mais se abre,

Que faz do meu inferno quase um Céu.

As imagens de João em “João de Deus: Cura e Crime” perfazem uma investigação à parte – suas expressões, seu cabelo, seu corpo, todas as transformações a que se sujeitou, ditadas pelo inexorável tempo e também pela inacreditável acumulação de riqueza e poder que granjeou. Como ele foi capaz de exteriorizar esse demônio, na superfície dos gestos, do sorriso, da pele? Onde estava seu espírito, ou era ele a manifestação espiritual via um corpo físico que não lhe pertencia? “O ato sexual é no tempo o que o tigre é no espaço”, disse certa vez Georges Bataille. O espaço de João de Deus – Abadiânia, a Casa de Dom Inácio de Loyola, sua sala privada – é o emblema da jaula existencial da contemporaneidade.

3 Nota do Crítico 5 1

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