Já que Ninguém me Tira pra Dançar
Leila para sempre Diniz
Por João Lanari Bo
Durante o Festival de Brasília de Cinema Brasileiro 2021
Em boa hora a atriz e diretora Ana Maria Magalhães soltou o documentário “Já que Ninguém me Tira pra Dançar”, sobre a incrível Leila Diniz. Não faltam depoimentos de quem conviveu de perto com Leila, vida breve porém intensa: ela morreu aos 27 anos em um acidente aéreo, no dia 14 de junho de 1972, quando voltava de uma viagem à Austrália. Leila Diniz tornou-se um mito. A palavra anda meio desgastada nos dias de hoje, mas ainda tem o seu valor – sobretudo em uma país como o Brasil, meio carente de heróis e heroínas, como dizia o poeta Gerardo Mello Mourão. Se olharmos a definição de “mito”, com dois cliques chegamos a duas variantes: (1) relato fantástico de tradição oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana; e (2) narrativa acerca dos tempos heróicos, que geralmente guarda um fundo de verdade. Pense em Leila Diniz e perceba como ela se encaixa nessas duas opções (outros menos votados, que insistem em serem alcunhados de “mito”, nem chegam perto). Leila Roque Diniz nasceu em Niterói, em 25 de março de 1945, formou-se em magistério e foi ser professora de jardim de infância em Ipanema. Gostava de ler poesia, e escrever poemas nas horas vagas. Uma de suas produções mais conhecidas é:
Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
O mar é das gaivotas
Que nele sabem voar
O mar é das gaivotas
E de quem sabe navegar.
Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
Brigam Espanha e Holanda
Porque não sabem que o mar
É de quem o sabe amar.
Na sequência das entrevistas de “Já que Ninguém me Tira pra Dançar”, assistimos à construção íntima do mito. A antropóloga Miriam Goldenberg, em outro contexto, deu a sua versão:
Leila Diniz foi a mulher que transformou milhares de cabeças femininas nos anos 60. Símbolo da liberdade e do amor livre, seu comportamento inovador em relação ao sexo, ao casamento e a maternidade, mudou o comportamento de uma geração de mulheres ainda presas em um tronco especial de escravidão social. Mulher que gostava de poesia, de beber com amigos, de dar risada, dançar, boa atriz, boa mãe, boa mulher para os homens que amou. Uma mulher feliz que as vezes, como toda mulher também chorava. Ela representou o que todas as mulheres gostariam de ser, “LIVRES”!
Não faltam momentos, digamos, polêmicos: a famosa entrevista no Pasquim, que balançou o coreto da moralidade instituída e deu a volta por cima. Imagine, caro leitor e cara leitora, novembro de 1969, ápice da ditadura, a banca de jornal estampar o tabloide semanário com uma foto de Leila, toalha na cabeça, com o seguinte título: “Leila Diniz: &$£7!”. Com 23 anos, sua entrevista não poupou ninguém, palavrões à rodo, a ponto dos editores do famoso semanário registrarem, não sem uma pitada de machismo:
Cada palavrão dito pela rósea boquinha da bela Leila foi substituído por uma estrelinha. É por isso que a entrevista dela até parece a Via-láctea.
O IMDb de Leila marca 28 créditos com atriz, TV e cinema: Leila está em clássicos do cinema brasileiro, como “Todas Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira; “Fome de Amor”, de Nélson Pereira dos Santos; “Corisco, O Diabo Loiro”, de Carlos Coimbra; e “Amor, Carnaval e Sonhos”, de Paulo Cesar Saraceni. Na TV, atuou no inesquecível “O Sheik de Agadir”, e na enigmática “E Nós, Aonde Vamos?”, entre outras. No teatro, atividade também incessante, relançou o teatro de revista com a peça tropicalista “Tem banana na banda”, e recebeu de Virgínia Lane o título de Rainha das Vedetes. No carnaval de 1971, foi eleita Rainha da Banda de Ipanema.
“Já que Ninguém me Tira pra Dançar” dá conta de toda essa vertigem. Com sobras. E ninguém outro que Carlos Drummond de Andrade também deixou seu testemunho de admiração:
Leila Diniz – sobre as convenções esfarinhadas
mas recalcitrantes, sobre as hipocrisias seculares e
medulares: o riso aberto, a linguagem desimpedida, a
festa matinal do corpo, a revelação da vida.
Leila Diniz – o nome acetinado do cartão-postal,
o sobrenome de cristal tinindo e partindo-se, como se parte,
mil estilhas cintilantes, o avião no espaço – para sempre.
Para sempre – o ritmo da alegria, samba carioca
no imprevisto da professorinha ensinando a crianças, a
adultos, ao povo todo, a arte de ser sem esconder o ser.
Leila para sempre Diniz, feliz na lembrança
gravada: moça que sem discurso nem requerimento
soltou as mulheres de 20 anos presas no tronco de uma
especial escravidão.