Inutensílios
O lugar do objeto e do cinema
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Funcionando como uma experiência que procura seus objetos e objetivos durante o próprio processo do documentário, “Inutensílios”, dirigido por Bruno Jorge (do ótimo “Piripkura“),é construído em blocos, como uma experimentação narrativa que ganha forma com a progressão.
Se nos primeiros minutos a atmosfera irônica e debochada da “citação à Bakhtin”, consegue ser presunçosamente despretensiosa, o mesmo não pode ser dito sobre outros inserts que aparecem na sequência. Por mais que haja um esforço para a verve experimental dialogar com essa composição de eterna incompletude do quadro, o diretor parece sempre se estender nas próprias sacadas, esvaziando e alargando uma situação. Por exemplo, quando os insert ajudam a construir uma suposta imagem que não está no quadro, compondo o quadro com elementos externos, é particularmente funcional, pois transforma a experiência do espectador, deslocando o filme para um campo menos programático. Contudo, esse interesse inicial é interrompido com outro insert, neste estava escrito “Foda-se tua opinião”, dando um tom pitoresco para a situação, quase que um impulso do diretor, que além de não ser efetivo, soa infantil.
Ao mesmo tempo, “Inutensílios”, que integra a mostra competitiva brasileira do Festival É Tudo Verdade, assume-se desde o princípio como um filme sem um propósito claro, onde Bruno comenta que não acha que um filme precisa ter um motivo. E isso justifica muito de sua estrutura e experimentações, como os recortes da cena do rodeio, com brincadeiras com sons e música são capazes de criar uma dimensão completamente diferente para uma cena, não só recontextualizando a própria imagem, como transformando o sentido em si. E esses momentos do documentário, são de grande êxito, pois demonstra o pleno domínio de Bruno com os registros que possui em mãos e sua preferência por uma fragmentação de imagem, quase que uma intimidade com o detalhe. O senso estético do diretor é realmente um grande destaque, especialmente por conseguir trazer uma lógica para esses registros aparentemente arbitrários, a partir de uma montagem que se assume como uma poesia isolada em determinados momentos, e um fragmento de uma grande composição em outros.
Porém, na mesma medida em que “Inutensílios” consegue demonstrar suas sacadas, parece se perder em algum tipo de orgulho às vezes. Quando ele anuncia que escutou uma história sobre um morto sadio, a ironia está posta, apresentada em um contexto onde ela ganha uma dimensão social e torna-se ainda mais engraçada, mas em seguida ele expõe um manual, uma outra ironia que surge do mesmo lugar, mirando uma meta-ironia (?) que perde a força, justamente por um alargamento da piada. E isso é recorrente no documentário, um prolongamento que perde força e faz uma determinada sequência parecer desajeitada, por conta de um capricho.
É compreensível que o longa, em sua incessante busca por um objeto, especialmente na estruturação de seus registros, possa deslizar em ideias pouco efetivas, aliás trata-se de um filme que procura encontrar um sentido em seus personagens, em sua paisagem e no descobrimento pessoal. O problema é que “Inutensílios” não consegue se manter estável durante esse processo, tendo tantos altos e baixos que parece se perder em algum tipo de orgulho das experimentações e ironias.
Bruno se interessa por seus personagens e consegue demonstrar, dentro de uma lógica espacial muito bem apresentada, uma narrativa que consegue atravessar um território, uma paisagem, subjetividades, sociabilidade e, claro, algumas inutilidades, com uma organicidade que ganha o espectador.
“Inutensílios” possui excelentes momentos, piadas e uma construção que caminha para uma intimidade realmente bela, mas não consegue sustentar seus fragmentos quando se estende, quase como uma saturação. O curioso é que não há tempo suficiente para uma saturação desse tipo, mas ela acontece justamente por esse caráter caprichoso de querer superar a própria graça frequentemente. Por sorte, essas recorrências não são o suficiente para transformar a experiência em algo ineficiente, apenas é capaz de desestabilizar algumas excelentes sequências presentes aqui e manter a composição geral em um lugar instável.