Instinto
Sobre Intuição e Descrédito
Por Jorge Cruz
“Instinto“, representante holandês dentre os aspirantes a indicação de melhor filme estrangeiro no Oscar 2020, marca a estreia da atriz Halina Reijn como diretora e roteirista – a sessão função dividida com Esther Gerritsen. O longa-metragem enxuga todas as possibilidades de tramas ou representações paralelas e foca na trajetória de Nicoline (Carice van Houten), psicóloga que começa a atuar em uma instituição penal de ressocialização de presos. Em seu caso mais emblemático, ela precisará lidar com Idris (Marwan Kenzari), que evita se descrever como estuprador e agressor de mulheres – optando pelo legalismo que o qualifica como “condenado por crimes sexuais e violentos”.
O grande dilema da obra é a crise ética interna da protagonista. A médica não consegue criar uma relação que a permita acreditar na eficiência de seu trabalho. Todas as conclusões acerca dos pensamentos de Nicoline são meros devaneios do espectador, já que a introspecção da personagem é o tom de todo o arco de “Instinto”. Todavia, é nítido que o grande incômodo da mulher é a ausência de qualquer traço de arrependimento por parte de seu paciente. Não há, pelo lado de Idris, a construção da empatia exigida pela psicóloga e que acaba sendo absorvida por ela mesma. O abalo emocional em profissionais que atuam nessas situações limítrofes geralmente é causado quando eles projetam fatos trágicos em sua realidade. A condição de mulher de Nicoline, portanto, é o ponto nevrálgico dessa crise desencadeada.
Há dois aspectos que Reijn trabalha em “Instinto” como puro exercício de bom cinema. O primeiro, mais óbvio, é transportar as sensações da protagonista para o ritmo do filme. A obra, por quase todo seu tempo, é quase uma manifestação de arrependimento divagante, como se “jogasse com a barriga” o que realmente incomoda. Assim como Nicoline, que passa seu tempo livre buscando diversão com a mesma falta de ímpeto com a qual trabalha para “curar” Idris. Essa fórmula, bem comum ao cinema europeu, de abordar a relação causa x consequência de maneira desproporcional, é identificada com facilidade. É como se o primeiro fator da relação (causa) fosse, digamos, marinado ou dessalgado – para que o segundo (consequência) se materializasse em um estalo, como um baque seco. Nesse aspecto, a construção da história pela cineasta não choca apenas em um momento e também cria uma espécie de crescente no ato final.
O segundo aspecto, o mais atraente da obra, é usar a já dita introspecção da protagonista para vilipendiar ao espectador seus sentimentos. Carine van Houten absorve muito bem essa criação e entrega um trabalho de atuação de grande qualidade. Os problemas de “Instinto” começam, entretanto, quando seu arco caminha para o aprofundamento da sexualidade da personagem. Exagera no tom sugestivo, até apelando para aspectos freudianos, sem que a tonalidade dramática fosse alterada. Pensando como um thriller essa ambientação se revela um desserviço às representações femininas – levando às últimas consequências a relação médica x paciente.
Nicoline não tem sua autonomia profissional respeitada, identifica a chegada de graves problemas e mesmo assim os recebe de braços abertos. Um fetichismo incômodo, que tem no seu clímax um debate patético sobre tecnicidades acerca das atitudes tomadas pelas duas personagens principais. Talvez o trabalho desempenhado por Reijn e van Houten, que fundaram a produtora independente Man Up (este longa-metragem é o primeiro lançamento da companhia) fosse, de fato, aproximar a obra de uma narrativa e abordagem masculina para desmoronar tudo no impactante final (só que não). Partindo desse entendimento, esqueça a pulverização do fator consequência da relação mencionado acima. O filme só faz sentido com a cena final – ou melhor, com os segundos finais. Porém, a conclusão carrega a mesma obviedade que inúmeros thrillers psicológicos possuem.
Mesmo adicionando outro senão à parte final do longa-metragem há uma mensagem forte, que merece ser partilhada por suas realizadoras. No fundo, Nicoline não possui quase nada de ingenuidade em sua visão de mundo. Pelo contrário, sabe que não conseguirá impor seu entendimento por ser mulher. Não há credibilidade, não há força, em suas palavras. Como não há no depoimento de quase nenhuma delas. Tanto que há uma naturalização de ambas as partes quando a relação de poder muito bem definida pela dicotomia médica x paciente se inverte. O texto de “Instinto“, portanto, toca na ferida do livre arbítrio nunca exercido por conta da opressão de gênero. Ao final, a protagonista é mais uma a ter que viver em uma sociedade que, no trato com ela, se vale da máxima de São Tomé e só acredita vendo.