Ilusões Perdidas
O Lobo dos Champs-Élysées
Por Pedro Mesquita
A adaptação literária no cinema sempre traz consigo uma série de problemas que o crítico deve responder: no caso de estarmos tratando de um filme bem sucedido, quanto desse sucesso se deve ao cineasta e quanto se deve ao autor da obra original? Um filme que visa à adaptação de uma obra literária canonizada seria, por causa disso, automaticamente bom?
Para respondê-los, o crítico que vos escreve toma o seguinte lado: no caso da primeira pergunta, parece certo que todo e qualquer filme só é bem sucedido na medida em que o trabalho de mise en scène do diretor é bem sucedido. O mais brilhante dos argumentos de nada serve se não for concretizado com competência por aqueles que filmam e montam. Pois o roteiro de um filme é pura virtualidade; ele pode tomar as mais diversas formas de acordo com as intenções e o talento do realizador. Uma história brilhante pode ser desperdiçada com um mau trabalho de mise en scène (a fraca adaptação de “Madame Bovary” feita por Jean Renoir em 1934 serve de exemplo, constituindo um dos pouquíssimos pontos fracos na brilhante carreira do diretor) assim como o seu inverso também é verdadeiro: uma história absolutamente banal pode se transformar num belíssimo filme nas mãos de um diretor inspirado (quantos filmes dessa natureza não nos deu Jean-Luc Godard, que, por muitas vezes, preferia a adaptação de histórias simples? Em suas próprias palavras: “geralmente, preciso de uma história. Se for convencional, também serve, talvez até seja melhor”). Donde vemos que a segunda pergunta também já se respondeu: toda adaptação literária, por mais extraordinária que seja a obra que lhe serviu de base, é sempre um jogo aberto.
Faz-se necessário abordar toda esta problemática pelo simples fato de que é muito fácil elogiar um filme como “Ilusões Perdidas”. O mais novo lançamento de Xavier Giannoli segue uma fórmula bastante segura (que, não à toa, lhe rendeu o recorde de 15 indicações ao César): adaptação de um romance amplamente consagrado, tido como uma das grandes obras da história da literatura; participação de um elenco repleto de estrelas do mais alto escalão do cinema francês (Gérard Depardieu, Cécile de France, Xavier Dolan, Jean-François Stévenin…); uma moral a favor da arte e contra a corrupção… todas essas condições, dadas a priori — pois definidas antes mesmo da etapa de filmagem, antes da realização propriamente dita do filme — apontam para uma recepção favorável. Resta saber, agora, se o filme a merece.
O mais notável desafio num empreendimento desta natureza é o da duração. Como transformar o calhamaço de Balzac — cuja fruição leva, mesmo ao mais ágil dos leitores, uma boa quantidade de tempo — num filme de duas horas e meia? Giannoli vai respondê-lo lançando mão de uma série de recursos. O mais importante deles é o narrador. Com ele abrimos o filme e com ele o encerramos, e durante a projeção são poucos os momentos em que ele não se impõe. Em “Ilusões Perdidas”, o narrador é onisciente e onipresente: ele existe por uma necessidade do filme de aludir a um universo muito maior do que aquilo que ele consegue apresentar em sua curta duração. Quando adentramos um novo espaço, ele nos conta tudo a respeito dele; quando conhecemos uma personagem, ele a destrincha muito habilmente. Considerado em si mesmo, isso não representa um problema — pelo contrário; como não admirar as linhas de Balzac, interpretadas com competência por Xavier Dolan? —, mas considerado em relação ao plano das imagens, esta abordagem prejudica o filme. Pois a narração toma um tal protagonismo no ato de avançar a trama que relega as imagens, muitas vezes, ao mero papel de reforçar redundantemente aquilo que foi dito.
Às vezes, inclusive, a narração até se antecipa à câmera, como, por exemplo, no momento em que somos apresentados ao diretor do jornal Le Réveil discursando apaixonadamente, ao que a voz em off o corta, anunciando que ele seria “preso anos mais tarde por tráfico de influência”. Este caso de ironia dramática nos lembra imediatamente os filmes de Martin Scorsese ou Adam McKay, diretores com uma predileção particular por essa relação de ironia entre narrador e personagens — enquanto a personagem se diz forte, o discurso do filme a contradiz. O mundo de “Ilusões Perdidas” é menos o mundo realista de Balzac que o mundo caricato de Scorsese ou McKay.
Novamente, não se trata de condenar a priori o uso de um recurso como a caricatura. Mas aqui as personagens são conduzidas a um tal grau de artificialidade que tornam-se meros veículos da mensagem que Giannoli busca veicular: os jornalistas do Le Corsaire-Satan, por exemplo, riem do péssimo trabalho que desempenham, demonstrando com bastante autoconsciência os seus papéis como meras engrenagens do sistema capitalista: “o meu objetivo”, diz uma das personagens, “é fazer o meu chefe enriquecer”.
Daí começamos a entender a vontade de trazer Balzac para o século XXI: algumas coisas nunca mudam. O capitalismo continua firme e forte; a crítica de arte continua, em sua maioria, um arbitrário jogo de palavras; a imprensa burguesa continua mentindo para defender os seus interesses (a pauta das fake news sai diretamente da boca de uma das personagens, que diz que “será tomado por verdade tudo aquilo que é provável”); os regimes autoritários ainda estão por aí… em suma, Giannoli tornou Balzac atual, no sentido de tomar da obra os temas que parecem especialmente caros aos dias de hoje. Ao fazer isso, porém, abstraiu dela aquilo que talvez seja a grande força do romance realista — a descrição minuciosa das superfícies e a sensação ímpar de “aqui e agora” que provém dessa descrição — para, no lugar dela, conceber uma obra extremamente sintética e hiperativa, que seduz e decepciona em igual medida. “Ilusões Perdidas” é, portanto, menos a obra-prima que a recepção crítica tem sugerido e mais uma espécie de equivalente francês d’O Lobo de Wall Street.