Il Legionario
Instrumentalização repressiva
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
A trama de “Il Legionario” funciona na intersecção de dois mundos diametralmente opostos, na mediação de uma única figura que não se encaixa em nenhum dos universos. Hleb Papou tem uma tarefa relativamente complexa aqui: deslocar o protagonista no eixo da instituição policial, para a qual trabalha, e repetir a dose no âmbito familiar, já que sua família vive em uma ocupação que ele terá de reprimir (o Estado em defesa da propriedade privada). Essa construção é menos pragmática que parece, já que a violência é uma constante na vida de Daniel (Germano Gentile) mas os vetores, e legitimidade desse uso da força, se modificam de acordo com espaços que ocupa e a roupa que utiliza.
Apesar da trama centralizar os esforços em Daniel, a diversidade dos personagens cria uma panorama da multiplicidade cultural envolvida na narrativa. O irmão marxista, à mãe que só paz, o chefe reacionário e racista que odeia os ocupantes, todos os manifestantes da ocupação… é um universo que expõe o caráter convergente para a tônica que norteia a Europa contemporânea: uma convergência cultural crescente que é atravessada pelo ódio entre as classes. Por um lado, a obra é capaz de debater a consciência dicotômica da relação de poderes e Daniel sendo jogado no meio desse conflito, por outro, reconhece que esse jogo entre agente repressor do Estado e “amigo” dos ocupantes, não irá se manter até o fim. A maneira com que a montagem vai construindo as variáveis voláteis para um conflito inevitável, é paciente porque consegue lidar com o drama de seus personagens sem atropelar os discursos políticos, principalmente por não se perder no fetiche da ação pragmática.
Quanto mais o espectador faz parte desses universos, mais compreende que a ideia de “companheirismo”, presente em ambas as partes, são divergentes materialmente. “Il Legionario” traz a ocupação como um ambiente de medos constantes, sorrisos nas adversidades, vozes opinantes e resoluções pacíficas. A tropa de choque, por outro lado, é hierarquicamente rígida, não há debates pessoais, todas os fins levam à violência (afinal, é a “função” deles) e até os encontros mais particulares possuem uma carga de formalidade/desconforto de Daniel, por saber que os apelidos racistas e o ódio aos manifestantes é a instrumentalização de seu corpo contra seu próprio povo. Assim, a narrativa é desenvolvida pela violência em ambas situações, onde o protagonista vai perdendo sua identidade, se transformando naquilo que os dois lados da história possuem mais medo.
É uma obra que mostra os fantasmas fascistas do passado e a opressão operante no mundo contemporâneo, em conflito direto com a questão da imigração. Importante por mostrar esse movimento de ocupação em solo italiano, o filme une as ideias de “Era o Hotel Cambridge” (2016) ,de Eliane Caffé (sem a beleza latino-americana) e “Shorta” (2020), de Anders Ølholm, Frederik Louis Hviid, mas sem a crescente adrenalina deste. Ainda que “Il Legionario” trabalhe superficialmente a maior parte das discussões presentes, suas exposições não são fugazes, ainda que essa centralização acabe diminuindo as possibilidades do diagnóstico da situação. Funciona como um gatilho pragmático de longa policial, mostrando a dissolução da pessoa e a reatividade da opressão, mas coloca algumas questões relevantes em pauta. Se houvesse mais espaço para o conflito direto com as instâncias estatais burocráticas, o espectador poderia ter uma noção maior da institucionalização desse consenso em favor da propriedade privada.
A negociação que realocaria os ocupantes para outro lugar parece servir como pretexto dessa dependência capitalista, contudo se mostra insuficiente para refletir de forma ampla as camadas ali envolvidas. O prêmio de melhor diretor iniciante para Hleb Papou, na mostra Concorso Cineasti del Presente, não soa absurdo já que o trabalho do cineasta é cadenciado e mostra uma consciência formal no rigor de seus espaços, que ganha um tom efervescente sem perder a mão. É um trabalho que provoca uma tensão diante do conflito. Porém, mostra aquilo que Locarno entende como verdadeiramente relevante para o conjunto das produções, europeias.