Harriet
Uma andorinha que fez verão
Por Fabricio Duque
O mais fascinante na arte cinematográfica é sua pluralidade de interpretações, sensações e percepções de se assistir a um filme. Infinitas possibilidades que atingem e afetam seus espectadores de formas únicas. Sim, em “Harriet”, indicado ao Globo de Ouro 2020, não poderia ser diferente.
O longa-metragem dirigido pela americana Kasi Lemmons (de “Visões de um Crime”) busca o hibridismo biográfico ao conjugar contexto histórico com ficção quando traduz às telas a vida e obra de uma heroína em um Estados Unidos escravocrata, Harriet Tubman (1822-1913), uma escrava que se tornou abolicionista por sobrevivência e “preparou o caminho” resgatando negros da escravidão.
Mindy, seu apelido, tornou-se Moses (uma alusão a uma das icônicas figuras da Bíblia), uma Hobin Hood salvadora, que não voltava ao perigo porque era “longe”, mas porque eram seus irmãos e irmãs (e precisavam dela). Nossa personagem, uma enviada de Deus, um anjo que recebia premonições-avisos divinas, abriu mão do gozo da própria vida para proporcionar liberdade a seus próximos, fazendo o bem sem olhar a quem. E nunca desistindo de sua missão Joana D’Arc.
É sobre uma mulher guerreira “Viajante”, que praticamente mergulhou em um portal dimensional que separava o inferno do paraíso, em um rio, e Harriet a metáfora de um instrumento que abriu as águas da navegação de sua vida e de centenas de outros necessitados.
Sim, “Harriet”, além de ser um filme urgente, visto que o racismo cada vez acorda mais, é um documento de informação. De perpetuar figuras importantes e decisivas da História do Mundo. Sem ela, crente incondicional, talvez não houvesse tantos sobreviventes. Sua fé inquestionável a conduziu com rigidez e força. Com seus sinais escondidos dos brancos, as melodias tradicionais e ancestrais dos negros, meros “animais serviçais”. E da música “Sinnerman”, de Nina Simone, umas das ativistas fervorosas dos movimentos negros, como Selma.
Sua diretora, Kasi Lemmons, que precisamos dizer que é negra, não para segmentar, e sim para pontuar sua responsabilidade e representatividade frente ao momento atual, cuja informação necessária serve para mensurar seu grau de envolvimento passional e pessoal com a trama, talvez tenha criado um distanciamento com o desenvolver da narrativa de sua obra, que procurou elementos característicos do cinema hollywoodiano para existir, com seus gatilhos comuns, liberdades poéticas cênicas, teatralidades das reações e interpretações, trilha sonora sentimental e de efeito, enfim, tudo quer potencializar a sensibilização do público a qualquer custo.
Mas nós precisamos entender que “Harriet” é acima de tudo um exemplar estrutural da cultura americana, uma contraditória e hipócrita retro-alimentação da moralidade da família e da emoção primitiva do próprio ser. Se analisarmos o comportamento povo de lá, então compreenderemos com mais substância e organicidade suas particularidades e idiossincrasias sociais. São sentimentais, dependentes, egocêntricos e se importam muito com as aparências, o que os outros irão pensar de seus jardins e portas francesas, e especialmente neste caso, a quantidade de negros-propriedades.
O filme é um retrato de seu passado com a edição técnica da contemporaneidade, esta que por sua vez representa o status de como estamos hoje realmente. Essa viagem talvez possa soar ingênua e preguiçosa demais. Quase piegas. Principalmente por tentar suavizar o pesado e desumano tema com redenção, alívios maniqueístas, e mensagem auto-ajuda à moda de um final feliz feliz de um desenho animado da Disney com pitadas de “E o Vento Levou…”, de Victor Fleming. Tenta-se a todo instante nos incutir a ideia de que o simples fato do conceito humanista já é o suficiente para transformar esta obra em um exponencial candidato às premiações de cinema.
Sim, caro leitor, nós precisamos separar o joio do trigo. Sempre. Nós devemos afiar nosso pensamento crítico, visto que é uma ficção pululada de atores. Ser condescendente com o amadorismo é ir de encontro à sétima arte. E mais. Estamos não só desesperando a personagem que homenageamos. Sim, traduzir biografias é redobrar a responsabilidade com as vidas abordadas. Não precisamos mencionar portanto a interpretação da atriz Cynthia Erivo (de “As Viúvas” e da série “The Outsider”), que apenas encapa ordens “Highlander” da diretora, que escreveu o roteiro com Gregory Allen Howard, para ser “imortal”, como por exemplo, a mesma coisa que aconteceu com Dira Paes em “Pureza”, exibido na mostra competitiva do Festival do Rio.
É uma obra histórica para proporcionar diversão e emoção a toda família. Assim, concluímos o primeiro parágrafo, que filmes são subjetivos e cada um é assistido de um jeito. Infelizmente, “Harriet” é protocolar demais, faltando a sua diretora o impulso requerido da própria liberdade cênica anunciada, que é o orgulho-equidade-luta de ser negro perante a sociedade. Seja livre ou morra! Contrariando a máxima popular de que uma andorinha só não faz verão.