Guerra de Porcelana
Guerra Transparente
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2024
“Guerra da Porcelana”, documentário de 2024 sobre a guerra na Ucrânia, já pretende no título mesmo jogar com a instabilidade da matéria – no caso, a porcelana, objeto impermeável, translúcido e de aspecto brilhante. A porcelana é frágil, diz Slava Leontyev, artista ucraniano e codiretor do filme, mas eterna, ela pode suportar calor extremo e mesmo depois de milhares de anos de enterramento ser restaurada. Uma metáfora, enfim, para o povo ucraniano, fáceis de quebrar, mas impossíveis de destruir.
Slava e a esposa Anya, o casal ceramista, protagonizam a cena, juntamente com Andrey Stefanov, pintor tornado fotógrafo. A vida corria idílica na Crimeia, plantas e insetos como modelos escultóricos, ar livre, todos dedicados a atividades artísticas, uma espécie de encontro metafísico entre criação e existência – é o que sugerem as imagens captadas por Slava.
A ocupação da península em 2014 pela Rússia, rápida e peremptória, liquidou esse cenário e obrigou o casal a um deslocamento para Kharkiv – perto da fronteira leste com o poderoso vizinho. Os anos passam, a região é conturbada pelos separatistas financiados por Moscou. A invasão em fevereiro de 2022 sedimentou o princípio da realidade, a guerra agora estava a um passo.
Crimeia retorna intermitente em flashbacks, mas “Guerra da Porcelana” não deixa dúvidas: estamos na linha de frente, linha imaginária, mas perigosamente real. Slava torna-se instrutor de armas para esquadrões de civis que se organizam, Anya decora os drones para os sobrevoos – e Andrey aposenta pincel e tela e pega na câmera, para registrar depoimentos, escaramuças e drones, incluindo filmagens de drones de outros drones lançando pequenas bombas nos invasores.
Nestas, o ponto de vista é vertical, vertiginoso. Em uma tomada, Slava comenta como soldados russos (ou norte-coreanos?) são enviados ao front literalmente como alvos, para permitir a localização do inimigo. Sua unidade, Saigon, continua a lançar bombas apesar de conscientes desse fato.
Localizar e destruir, o moto básico das guerras, atingiu um novo patamar com a saturação de drones de vigilância, transmitindo imagens em tempo real, na guerra na Ucrânia. Todos podem ver praticamente tudo. O campo de batalha tornou-se transparente, drones de todos tamanhos e procedências, mais ou menos sofisticados tecnicamente, ampliaram o escopo do reconhecimento militar – sobretudo num cenário de fricção permanente – para um nível inédito.
Combinados a satélites e aviões de reconhecimento, a visão é total. Para bloquear drones onipresentes, russos e ucranianos engataram uma guerra eletrônica feroz: sinais disfarçados de celulares civis, rádios com sinais de curta distância, redes de camuflagem multiespectrais para bloquear calor, capas de invisibilidade contra câmeras térmicas.
Eles estão a apenas alguns quilômetros da linha de frente, e eu estava trabalhando em Los Angeles. Estávamos separados por essa grande distância e por uma barreira linguística, disse o codiretor do documentário, Brendan Bellomo. Foi um filme concebido, produzido e editado via Zoom, em si mesma mais uma técnica de supressão de distância entre imagens. Câmeras e apetrechos foram enviados ao teatro de guerra através de uma ong humanitária – e cidadãos comuns transmutados em soldados acabaram produzindo imagens com pontos de vista singulares e únicos, do interior dos combates.
“Guerra da Porcelana” articula-se em torno de contrastes, da metafísica da criação à destruição tecnologicamente optimizada. Porcelana, afinal, é um mau condutor de correntes elétricas. Nesse mundo de incompatibilidades, em que uma potência nuclear como a Rússia alega “percepção de insegurança” – a suposta ameaça da OTAN – para invadir o país vizinho e romper com a ordem internacional, arte e guerra se igualam ontologicamente.
Países vizinhos também tem direito a “percepções sobre insegurança” – para um cidadão polonês ou lituano, por exemplo, a única alternativa para escapar da vassalagem ao império russo, no estilo Belarus, é entrar para a OTAN. Depois da invasão, Suécia e Finlândia, antes neutros, juntaram-se ao grupo.
A reviravolta trumpista ameaça lançar o conflito na Ucrânia em uma zona fantasma – o território ucraniano ficaria dividido em duas zonas de domínio, russa ao leste e americana ao oeste. Partilha que lembra o que Hitler e Stalin fizeram com a Polônia quando assinaram o Pacto Germano-Soviético em 1939, definido como um acordo de conveniência entre os dois grandes e amargos inimigos ideológicos.
As tratativas de Trump para convencer a Ucrânia a assinar acordo sobre minerais raros, ao mesmo tempo que acena com gestos de aproximação para a Rússia, fazem parte desse cenário imprevisível. A população ucraniana não dá sinais de que vai aceitar esse jogo. Salve-se quem puder.