Mostra Um Curta Por Dia 2025

Guerra Civil

A ingenuidade da alegoria

Por João Lanari Bo

South by Southwest Film Festival 2024

Guerra Civil

Nesses tempos polarizados que correm à nossa volta o cinema, mais uma vez, comparece com uma alegoria provocante – “Guerra Civil”, dirigido por Alex Garland, veio ao mundo com a pretensão de simular o racha político-ideológico que nos assombra. Alegoria: figura de estilo ou linguagem, mais especificamente de uso retórico, que produz a virtualização do significado, ou seja, sua expressão transmite um ou mais sentidos além do literal. Diz-se b para significar a. Seguindo a Wikipedia: uma alegoria não precisa ser expressa no texto escrito: pode dirigir-se aos olhos e, com frequência, encontra-se na pintura, escultura ou noutras formas de linguagem.

Guerra Civil” simplesmente propõe-se a alegorizar a queda do império norte-americano, esse que paira no firmamento das nações desde o início do século 20, atravessou guerras de alcance mundial, inaugurou a era das bombas atômicas, despertou ódios e afetos em escala global – e sucumbe inapelavelmente, no olhar de Garland, implodido por contradições internas que se materializam de forma avassaladora. Toda essa violência, aliás, surge no tempo/espaço do filme como algo dado, está lá: quaisquer ilações sobre fraturas políticas, esquerda x direita, “wokes” x fundamentalistas, não importam – são irrelevantes. Os “Estados Ocidentais” se rebelaram? California e Texas se juntam à “Aliança Florida” para derrubar o poder em Washington? Nada é explicitado, união ou desunião.

Se algum país tem tradição de fazer guerras, para o bem e para o mal, é o Estados Unidos (o nome mesmo escolhido pelos próceres da independência, em 1776, já indica uma aliança guerreira). A sangrenta Guerra da Secessão, de 1861 a 65, cicatrizou uma ferida socioeconômica de raízes profundas – e que parece sangrar novamente, pelo menos em nível de alegoria cinematográfica, com “Guerra Civil”. O cinema, que preza pela espetacularização da violência, explorou esse filão via de regra construindo o Outro aterrorizador, alienígena ou comunista, ou até mesmo zumbi. Quantas vezes já assistimos a Casa Branca e os edifícios neoclássicos da capital norte-americana serem profanados, destruídos, arrasados?

Alex Garland, que também assina o roteiro do filme, concentrou no pequeno grupo de jornalistas o gancho de empatia com o público. A fotógrafa Lee Smith (Kirsten Dunst) é a portadora do olhar instituído da imprensa: Não fazemos perguntas, diz ela sobre seu trabalho, registramos coisas para que outras pessoas possam fazer perguntas. Joel Martinez (Wagner Moura) é um repórter safo, à procura da última entrevista do Presidente; a inexperiente Jessie (Cailee Spaeny), candidata a fotógrafa, força a barra para acompanhar a dupla; e o ultra experiente Sammy (Stephen McKinley Henderson), que faz reportagens para o que sobrou do New York Times, fecha o grupo. O que se segue é um road movie imerso na zona de guerra entre Nova York e Washington.

De novo: quantas vezes produções hollywoodianas alegorizaram esse território devastado, onde sobra pouco ou nada da infraestrutura, onde a propriedade é abolida e onde passa a valer, pura e cabalmente, a lei do mais forte? Há uma patologia na audiência que demanda esse tipo de narrativa – a novidade de “Guerra Civil” está na sensação de proximidade que insinua com os impasses da esfera política, com a falência da institucionalidade, diriam os mais afoitos. Garland parece ter escolhido uma alegoria esgarçada do presente contaminado pela virulência das redes sociais, pela manipulação insidiosa que se faz delas (a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 é um marco dessa tendência). Os estrategistas militares cunharam o termo “guerra híbrida” para situar o fenômeno, que supõe uso intensivo de “guerrilha cibernética”. Os russos talvez tenham sidos os pioneiros dessa estratégia – a eleição de Trump em 2016 foi provavelmente o exemplo mais eloquente da eficácia do método.

O quarteto protagonista do filme se move em função dos eventos que se abatem sobre ele – cenas terríveis de violência, turbinadas ao extremo – que detonam nos personagens alguma qualidade moral ou outra reação, em última análise também alegorias. Alguns teóricos utilizam o termo alegoria ingênua para descrever esses momentos, interpretados com talento sobretudo pela dupla Kirsten Dunst e Wagner Moura, que catalisam a densidade dramática dos acontecimentos e expressam novos sentidos – assim como, numa breve aparição, por Jesse Plemons, excelente ator (e marido de Kirsten na vida real).

Sim, vivemos sob o jugo dos tempos polarizados – seria esse o nervo que “Guerra Civil” tocou, batendo recordes sucessivos de renda nas salas de cinema? O filme custou 50 milhões de dólares, foi produzido de forma independente pela A24 e já arrecadou – segundo o Variety – mais de 70 nos mercados interno e externo, nas primeiras semanas de exibição. Isso sem falar nos derivados, streaming e assemelhados. Alegoria, enfim, dá lucro.

3 Nota do Crítico 5 1

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