Grand Tour
Embarcando na estética da viagem
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024
Miguel Gomes busca ser, acima de tudo, um antropólogo do olhar do momento. Suas imagens contemplam a estética de tempos suspensos, numa metafísica pragmática de comportamentos humanos atravessados no espaço em que se habita no momento, não definitivo. O realizador português busca assim o exato instante da coloquialidade, sentida pelo sentir orgânico. Em “Grand Tour”, exibido aqui na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano, Miguel Gomes eleva seu cinema à forma da viagem, a um tour ficcional pelo sudeste asiático, em que a personagem principal foge do “amor” para encontrar a aventura da própria vida melancólica.
“Grand Tour” constrói sua narrativa mais de caminho on the road nas características intrínsecas do cinema português, em que se observa silêncios, impulsos e vazios existenciais. Aqui, tudo é para ser uma experiência visual (entre cores e preto-e-branco; entre estrutura de cinema mudo – inclusive com legendas na tela), como as performances numa roda gigante de parque caseiro, de estética fragmentada, cuidadosamente improvisada e de película, saturada ao granulado, numa nostalgia real de teatro de bonecos em Singapura, para assim traduzir a ambiência de 1918. “Grand Tour” é um exercício de conceito (sonho, narração, projeção e reconstituição). Tudo está junto e misturado.
Ao sinalizar que a narrativa é etérea, quase sonâmbula, começamos a entender todos os pontos soltos. O acidente do ônibus na floresta e a cobra. Até mesmo o silêncio interrompido pela música. Tudo é uma aventura. De desconexão com a ordem da realidade. Chinês sem legendas. Fusão de imagens. Um homem que casou com três mulheres. A coroação de uma criança. Acupuntura. O ano novo. A câmera lenta. Tudo é um balé de contemplações. Tudo é para ser mais transcendental, subjetivo, aberto, “delirante, mas sereno” e confuso. Tudo é sobre o novo conhecimento da personagem em sua viagem. Ele não entende a língua. Nós também não. Nossa percepção chega a ser interativa. “Suba a montanha”.
“Grand Tour” é um filme que capta culturas e suas particularidades. Não julga, apenas vivencia como um atento antropólogo. Choros, emoções, tradições, rituais, ancestrais, sombras de gente invisível (“não fuga da sombra”), regras da natureza, ditados milenares, “mundo generoso”. Cada coisa precisa ser coletada, de forma acumuladora. Nós somos imersos em fluxos de pensamentos, em digressões-metalinguagem, em julgamentos superficiais, em música brasileira, em saudades, numa fuga “gato e o rato” com a “ex-noiva”, em observar macacos e a polícia japonesa, e em até estéticas futuristas. Sim, nossa mente, já atordoada de tantas informações desconexas, pergunta qual o propósito. Para onde o filme está indo?
E num misto de documentário, flertes e muita “viagem”, “Grand Tour”, que segue à risca a estética conceitual de criação do cinema português – que surfa mais na ideia hipotética de ensaio mental que na concretização da ação, imprime aqui uma estranheza narrativa, em que tudo parece ser distante, fora do tom, de elipses juntadas para falar da universalidade do desejo e da covardia de um funcionário público do Império Britânico, Edward (o ator Gonçalo Waddington), que começa em Birmânia (hoje Myanmar), que foge (no dia do casamento) de sua noiva Molly (Cristina Alfaiate), que por sua vez o persegue, mas se diverte com a fuga de seu “marido”. Aqui, Miguel Gomes quer importar a forma do cinema mudo, em que as reações são bem mais expressivas.
Baseado livremente no livro “The Gentleman in the Parlour”, de Somerset Maugham, “Grand Tour” é também sobre vivenciar da experiência do Grand Tour asiático, que em meados do século XVIII havia se tornado uma característica regular da educação aristocrática na Europa Central. Miguel Gomes contou que primeiro fez o Grand Tour, resultando num “arquivo de viagem” para só assim “escrever o roteiro”. “A escrita resultou do nosso confronto com essas imagens”, disse e complementa que este contempla “vários grand tours”: geográfico, percorrido, imaginário, afetivo, temporal, real, mundial e cinematográfico. “Grand Tour”, como disse, é uma viagem desconstruída, despretensiosa, (des)narrativa, que permite a cada um escolher a programação de seu grand tour.
Há sofisticação controlada nessa condução, há complexidade inocente e há o comportamento humano, ainda que menos naturalista e bem mais simulado à ideia. Assim, “Grand Tour” é um filme para ser visto de dentro, sem buscar tantas definições, entendimentos e compreensões na literalidade do que se vê, se escuta e que se pensa.