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Fúria Primitiva

O Deus-Macaco

Por João Lanari Bo

South by Southwest Film Festival 2024

Fúria Primitiva

Fúria Primitiva”, finalizado em 2024, é o longa de estreia do ator Dev Patel, desta vez atuando também como diretor. Seu projeto era recuperar o gênero “ação” (ou seja, pancadaria) para um patamar mais elevado: o gênero de ação foi abusado pelo sistema, disse Patel, sabe, dinheiro fácil…eu queria dar alma a ele, trauma real, dor real. E completou, dirigindo-se à audiência: vocês merecem isso, eu queria infundir um pouco de cultura. A singeleza da proposta combinou mitologia hindu com história em quadrinhos, violência exuberante com crítica político-social – tudo isso num coquetel de tirar o fôlego. No final, quem socorre o herói, interpretado pelo próprio Patel, é um grupo milenar de transgêneros, os hijra – bem-vindos à Índia.

Dav Patel nasceu na Inglaterra, filho de imigrantes provenientes da diáspora hindu no Quênia – praticantes do hinduísmo, e falantes do guzerate, língua originária do estado do mesmo nome a oeste da Índia, com 61 milhões de habitantes. É também o idioma da numerosa comunidade guzerate de Mumbai, onde se passa a história – no filme, chamada ficcionalmente de Yatana. O atual primeiro-ministro da Índia, o conservador e fundamentalista religioso Narendra Modi, é etnicamente guzerate. Toda essa intrincada cartografia geográfica-cultural jaz em algum lugar na psique de Dav Patel, um dos atores com rosto e aparência de indiano mais conhecidos no Ocidente, senão o mais conhecido.

Talvez o feito mais notável de “Fúria Primitiva” tenha sido a transformação corporal de Patel, agora um poderoso e invencível lutador em busca de vingança. Do franzino e assustado Jamal Malik respondendo perguntas na TV em “Quem quer ser um milionário”, de 2008, quando despontou no showbiz – ao adulto que volta a Índia para encontrar a família depois de errar perdido em Calcutá aos 5 anos, e ser adotado por um casal na Austrália, em “Lion: uma jornada para casa”, de 2016 – Dav Patel firmou-se como instância referencial do público fora da Índia, signo de entrada nesse profundo e misterioso universo. Ele funciona como uma ponte entre dois mundos, entre um mundo conhecido, o nosso, e um mundo cuja complexidade desafia a lógica cartesiana.

Claro, uma tal comunicação, ainda mais em se tratando de entretenimento mainstream, funciona sobretudo a base de clichês. Patel é Kid, um sujeito atormentado pelo assassinato de sua mãe nas mãos de Rana (Sikandar Kher), chefe de polícia sob o comando do guru e líder político Baba Shakti (Makarand Deshpande). Pontuado por breves flashbacks da infância rural do protagonista, sempre num tom idílico-infantil, somos introduzidos à matriz da energia impetuosa de Kid – Hanuman, deus-macaco do hinduísmo, uma das encarnações do poderoso Shiva. “Fúria Primitiva” singulariza na mãe a transmissão oral da tradição. Energizado, Kid consegue penetrar num ambiente luxuriante de sexo, drogas e corrupção – a Índia moderna – que convive com a miséria acachapante de uma grande metrópole do Terceiro Mundo. Sobrevive fazendo bico de lutas sangrentas, usando uma máscara de macaco.

A performance de Patel lutador é a âncora narrativa do filme – realçada pela câmera nervosa e edição héctica. Em cada sequência de luta, apanhando ou batendo, é Hanuman quem protagoniza. Todos os limites são testados, mas a energia sem fim encontra, inesperadamente, um limite – e é resgatado por Alpha, guardião de um templo devotado a Ardhanarishvara, divindade meio homem e meio mulher, dividido igualmente ao meio. Santuário para a comunidade hijra, mulheres transgênero conhecidas há pelo menos quatro mil anos nos livros sagrados do hinduísmo, o local está sendo alvo do movimento nacionalista e ultraconservador de Baba. Kid aproveita a pausa para refazer sua potência, ao som da percussão divina.

A produção dessa saga foi outra proeza heroica. Patel descreveu dessa forma:

Nós deveríamos filmar na Índia, mas a COVID chegou. Perdi meu designer de produção e diretor de fotografia – o filme estava basicamente morto. Então mudamos e fomos para uma pequena ilha na Indonésia, onde poderíamos criar uma bolha em um hotel vazio para toda a equipe, quase 500 pessoas. Foram nove meses exaustivos de alegria absoluta e caos total.

Para tornar as coisas ainda piores, a Netflix, que havia se comprometido a comprar “Fúria Primitiva” para distribuição mundial, acabou desistindo, preocupada com a reação do público indiano aos comentários políticos do filme. Quem salvou a pátria foi Jordan Peele, que viu o filme e convenceu a Universal Pictures, com quem sua produtora tem acordo de exclusividade, a adquirir o filme da Netflix por menos de US$ 10 milhões.

Hanuman, no fim das contas, venceu a parada.

 

 

3 Nota do Crítico 5 1

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