Freaks Out
Cripface: O filme - A eugenia do cinema em 2022
Por Giulia Dela Pace
Festival Internacional de Cinema de Veneza
O programa T-4, também conhecido como “Eutanásia”, ocorria em diversas etapas. Dentre elas, a identificação de pessoas com deficiências físicas ou mentais. Em seguida, passavam pela avaliação dos médicos alemães, pois eram eles que analisavam o histórico médico dos pacientes e determinavam quais deveriam ser mortos. Além de “supervisionar” as execuções de outros. Apesar do contexto histórico da época, em 1941, a população organizou diversas manifestações públicas contra o programa T-4, mas o partido nazista manteve programa ativo em sigilo durante toda a Guerra, matando cerca de duzentos mil pessoas deficientes entre 1940 e 1945 – sem distinção de idade e gênero. E este é o contexto e tema de “Freaks Out”, de certa forma, ainda que o diretor Gabriele Mainetti tenha buscado uma abordagem mais fantasiosa e quase alegórica para este sombrio momento. Embora o cineasta estivesse fortemente ancorado na eugenia nazista ao realizar o casting para um filme que esbanja o cripface sem a menor vergonha ao realizar.
Matilde, Cencio, Fulvio e Mario são ambos personagens “especiais”, pois cada um tem algum tipo de habilidade fora do comum e até mesmo mágica. Eles vivem como se fossem uma carinhosa família de colcha de retalhos num circo italiano da década de mil novecentos e quarenta. Quando o dono do empreendimento e figura paterna, Israel, desaparece misteriosamente, os demais integrantes da trupe tentam se reorganizar novamente, mas sozinhos numa cidade estranha para eles e ocupada por nazistas.
O interessante dessa proposta, como muitas outras que retratam o “Outro” – conceito de Simone de Beauvoir para definir aquilo que não é a norma, ou seja, aquilo que não é o homem héterocisnormativo, não PCD e branco – como figura excepcional da narrativa, é o recorte que demonstra o fortalecimento e mais pontos positivos que diferem o personagem do ordinário, ao invés de enfraquecê-lo por seus pontos negativos. Assim como em “O Mágico de Oz” – onde temos personagens que são justamente tudo aquilo o que lhes falta -, em “Freaks Out” temos: Matilde (Aurora Giovinazzo) uma jovem com poderes elétricos que não consegue controlar, Fulvio (Claudio Santamaria) um personagem que provável portador de hipertricose lanuginosa congênita – uma doença rara que produz pêlos no corpo inteiro, poupando apenas certas regiões mucosas – que também possui uma “super força”. Mario (Giancarlo Martini) é um personagem com nanismo e capacidades eletromagnéticas, além de ser um personagem mudo. Enquanto Cencio (Pietro Castellitto) é o albino capaz de controlar insetos e Israel (Giorgio Tirabassi) é o cabaretier que não é “mágico” ou extraordinário, mas uma delicada inteligência emocional e algumas habilidades de ilusionismo.
Pietro não é albino, Giancarlo não é mudo, Claudio não sobre de hipertricose lanuginosa congênita. E isso é cripface. Ou seja, um flerte capenga com “O Mágico de Oz” e de narrativa de superação que segue uma fórmula barata hollywoodiana, como se “O Labirinto do Fauno” de Del Toro fosse realizado pela equipe de “Para Todos os Garotos Que Amei”, produção da Netflix.
Enquanto Fulvio muito fala sobre sua impossibilidade de conseguir ser aceito socialmente por sua aparência e condição, o filme apenas reforça essa prática tão comum do cinema que, constantemente, sofre de generosas passadas de pano dos espectadores, da crítica… pior ainda: da equipe realizadora do filme ou produto audiovisual. O cripface, além de ofensivo para a comunidade PcD, está enraizado no capacitismo e eugenia. Porque além de reduzir a não inclusão de pessoas PcD à frente das telas por alegar incapacidade de realização dos papéis, a constante falta de ofertas de trabalhos na indústria cinematográfica para essa comunidade é fruto de uma política excludente de pressões estéticas e “neurotipicidade”.
Portanto, por mais que o cinema italiano tenha sido bem sucedido em obras cinematográficas de gênero – nesse quesito “Freaks Out” é quase aceitável –, o discurso do filme é tão incoerente e vazio que ao quebrar com estigmas capacitistas e limitadores do Outro, ele apenas reforça tudo o que condena, pois é mais fácil contratar atores “bonitinhos”, cobri-los de maquiagem e “atuar” como neurodivergentes – se isso fosse mesmo possível –, ao invés de contratar atores profissionais PcD e adaptar toda a produção às suas necessidades. Mas o lucro sempre grita mais alto.
O conceito do filme acaba por ser mais interessante ao tratar dos “errados” não arianos como os heróis, visto que geralmente são americanos que salvam o dia em filmes de aventura da Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, o sofrimento dos judeus – principais vítimas do holocausto – é tratado como passasse despercebido. O longa deveria ter sido mais atencioso ao tratar de um massacre dessa escala de modo que comunicasse toda dor do evento. Mas o que esperar da estética de representatividade lacradora “netflixiana”, que a priori podemos assimilar como algo positivo, mas que não passa do mesmo discurso eugenista pregado durante a guerra?
“Freaks Out” não deixa seus objetivos tão claros e trabalha tudo de forma superficial e rasa. Com personagens caricatos lançados na história para expor muitas informações e reunir todos em um grande finalzinho mixuruca, tal como “filmes Marvel” fariam. E por mais interessante que seja tratar a questão dos Outros como heróis, em termos de narrativa, linguagem fílmica e construção de personagens o filme é suficiente para uma criança eugenista espectadora da “sessão da tarde” … apesar de terem cenas de sexo explicito que só apareceriam em uma fantasia dark mais robusta, que mais uma vez não é o caso. Uma perfeita confusão preconceituosa e vazia de significado, sem mais delongas.