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First Cow

O Nascimento de Uma Nação

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Berlim 2020.

First Cow

Cada vez se tem mais a certeza que a sutileza vence sem dificuldades do exagero. Sim, a colocação quase totalmente redundante reitera o fato do poder da simplicidade. De não se precisar maquiar demais a fim de obter o resultado esperado. Em seu mais recente “First Cow”, a realizadora americana Kelly Reichardt (de “Certas Mulheres”) maestra um faroeste intimista de contemplação editada; uma fábula-crônica sobre o nascimento do capitalismo (que precisa roubar para produzir); e sobre a modernização das relações humanas (que antecedem padrões conservadores).

Exibido na mostra competitiva ao Urso de Ouro do Festival de Berlim 2020, “First Cow”, baseado no livro “The Half Life”, de Jonathan Raymond (que também é roteirista a lado da diretora), objetiva a criação de uma sinestesia coloquial, do presente ao passado. De ossadas de um amor verdadeiro. A fotografia granulada passa a sensação de que assistimos a uma película em 35mm, principalmente ao se conjugar com a trilha minimalista de Wlliam Tyler.

Aqui, a natureza não é cenário e sim habitat natural desta parábola sobre a organização do Mundo, com seus povos nômades na floresta e seus ruídos identificáveis. O trabalho de nosso protagonista Cookie (o ator John Magaro, conhecido por seus trabalhos em “The Umbrella Academy”, “Jack Ryan”, “Carol”) é improvisar dentro do absurdo de se viver em condições tão adversas. E assim, ela faz. Não só expande possibilidades, como ressignifica toda sua existência ao dividir o dia-a-dia com “forasteiro fugitivo” o Rei Lu (o ator Orion Lee, de “Only You”). Em “First Cow”, personagens não têm nome. São definidos e adjetivados por suas “funções”.

Sim, é um primitivo mundo selvagem, que cita o poeta William Blake, e que sutilmente descortina a questão “O Segredo de Brokeback Mountain”, de Ang Lee, só que aqui, o mais importante é a declaração incondicional do afeto entre dois homens (solidariedade e uma insinuação – quando um vai cortar lenha e o outro pega a vassoura para limpar a casa, sem esquecer das flores para decorar o ambiente), em uma sociedade que precisava estar mais interessada na sobrevivência que na fofoca dos outros. É uma terra ainda sem lei. Que descobre a crueldade, sentimento que transcende o se manter vivo. Índios, russos, ingleses, americanos, todos humanos, impulsivos e “esquentadinhos”.

“First Cow” é uma “expedição estranha” fora de noção e de sentido. A entrada da primeira vaca, briga na taverna, a sugestão de como Cookie (que “nunca parou de se mudar” e quer ser padeiro) conseguiu botas novas e a retroalimentação dos sete pecados capitais antes da civilização, que traduzem exatamente o que nosso mundo é agora. O espectador em certo momento percebe uma inferência: a de que tudo isso não passa de uma experiência temática à moda do seriado “Westworld”. Nosso “baker” depara-se com a tranquilidade de uma família na vida rural, que juntos se aventuram na produção de “biscoito-bolo chinês” com “ingrediente secreto”. Que tem o “gosto de Londres”. E ou o “Clafoutis” (doce com mirtilo). A narrativa consegue dosar com precisão a sensibilidade, a hora da ação e os alívios cômicos (a conversa com a “doadora” – humanizando o processo com ingenuidade fofa).

Ao mesmo tempo que é simples e inocente, o filme mostra que para se produzir em massa é “permitido” pegar um pouco do ricos (com um que de Robin Hood) para se tornar um “meio” rico. Contraditório e paradoxal. Como já foi dito, a película está nos detalhes. O afeto é demonstrado pela “troca de botões” e/ou pela primeira lembrança ao acordar. “First Cow” é poesia pela naturalização. De união e de permissão a inúmeras formas de amar. Não somos conduzidos apenas à alusão político-histórico-social-comportamental, mas principalmente de que não precisamos mesmo de muito para sermos felizes.

O filme foi bem recebido aqui em Berlim e se firma como um dos grandes favoritos ao prêmio máximo. Não só porque é uma mulher na direção, que buscou referências western nas obras da realizadora inglesa Ida Lupino, radicada nos Estados Unidos, mas devido a seu controle absoluto de integrar ideias à tela grande, que fala de uma América longe das grandes cidades cheia de promessas.

Os “foras da lei” mostram a “fronteira”, a superfície de projeção dessa América para os sonhos nacionais, não como um espaço a ser conquistado econômica ou materialmente, mas como um local de encontro. Um ótimo cenário alternativo com significado social e político especial para o presente. “A Primeira Vaca” é o leite, a carne e o capitalismo desenfreado, que atravessa sem dor, nem piedade, quem está em seu caminho. As ossadas provam resquícios de que ainda é possível recuperar a esperança, a poesia, a amizade e o amor.

4 Nota do Crítico 5 1

Trailer

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