Filme Particular
O contexto de cada dia nos dai hoje
Por Ciro Araujo
Durante o Olhar de Cinema 2022
No começo, a tela escura. Textos breves cor vermelho forte abrem o longa. Eles explicam a iniciativa e dão contexto para o que seria uma experiência com o público. “Filme Particular” trabalha sob o pretexto de revisão crítica sobre um achado perdido, através de pesquisas históricas e testes da diretora Janaína Nagata.
Os primeiros dezoito minutos da obra são dedicados ao filme de 16mm, encontrado após uma compra para reparar o projetor da cineasta. O filme, em estado particular, veio junto. A curiosidade do espectador acompanha o longa-metragem desde cedo, interessado em compreender primeiramente o conteúdo desse achado e ao espectar realmente o escaneamento, se inteirar por completo e ter muitas questões respondidas. A imagem colorida inicialmente percorre por um nome em alemão, pessoas negras, muito provavelmente africanas. Uma antiga colônia alemã, na pós-guerra? O visual da milimetragem do filme deixa pistas de anos sessenta, setenta. Então partirmos para agora um visual urbano, carros que correm pela mão direita, portanto, colônia inglesa. Faz calor, as ruas cheias de brancos. Poderia ser a África do Sul, mas afinal, como tanta gente branca reunida? A resposta parece óbvia, mas no momento do filme em que a conspiração parece tomar conta do indagante trecho, estamos reunidos de mais dúvidas. Quem o filma, quem são os personagens ali retratados, algo dentro de tudo não parece possuir uma alma de correto, como se existissem assombrações dentro da imagem.
Janaína não recorre à narração novamente para isso. Ao finalizar os dezoito minutos de 16mm, agora ela divide a tela utilizando um recurso popularizado durante os anos pandêmicos, da interface do computador. Ela abre um navegador de Internet e propõe desvendar os vários mistérios enquanto o público acompanha, atônito e silencioso. Rebobina e avança, quadro por quadro, acelerando e desacelerando o vídeo. O som assustador da trilha sonora ao contrário começa a assustar e as peças são preparadas: África do Sul, anos sessenta. Os pequenos detalhes em que “Filme Particular” encontra em sua própria imagem transforma a ampliação em necessidade; Michelangelo Antonioni faria o exato conceito em uma Swinging London, em “Blow-Up: Depois Daquele Beijo”. Neste, o diretor percorre incansavelmente apenas uma imagem e suas várias interpretações do que a foto esconde. Nos vários quadros do filme de Janaína, a ideia corre mais por Roland Barthes e o campo cego da fotografia. O que há detrás dessa foto? O que há mais de contextualização para além? Esse fetiche se torna obsessão para o processo gráfico que revela cada vez mais uma rede de esquemas envolvendo o Apartheid sul-africano.
A pulsão aqui é de aventura. É um dispositivo usado pelo filme para conservar a necessidade e especialmente a curiosidade mantida. O estranho toma conta, pelo teor muito próximo de serial killer e teorias de conspiração. Mas na verdade, aquilo que caracteriza o longa como creepy – palavra do inglês para algo assustador – é presente para apresentar e problematizar o embranquecimento realizado na África do Sul. O regime acabou apenas em 1994, tempo tão recente que se for comparado, todos desses filmes norte-americanos nostálgicos dos anos 80 e alguns dos anos 90 lançaram antes mesmo do fim de uma estética e política “racistamente explícita”.
O absurdo é satirizado e ironizado por Janaína, através de vídeos da plataforma online do YouTube ou até uma remixagem dos 16mm originais. A mão de uma criança que acena lentamente em loop enquanto descobrimos que o local agora faz parte do museu em homenagem a Nelson Mandela. Enquanto isso, nos anos 60, apenas brancos, servidos apenas por negros. Essa composição remete ao horror presente dentro desse experimentalismo fílmico, não esquecendo de uma comédia ácida em comentários silenciosos. A montagem instantânea, isto é, ao vivo, que a diretora ao menos dá a sensação de fazer, permite captação de mensagens bem diretas e certeiras. Em um determinado momento, uma mulher europeia fala sobre não haver penteados “africanos” na Itália. Tudo de uma forma necessariamente “branca”, o que torna o satirismo e a acidez um DNA do filme.
A realidade é que dos absurdos soltados em “Filme Particular”, nenhum é falso ou nada próximo. As conexões construídas, por mais que sejam próximas do conspiracionismo, na realidade finaliza o terror por meio desse susto. Imagens borradas e desmembramentos de quem começara o Apartheid, tudo escondido dentro do que seria uma mera filmagem caseira familiar. Quem diria que caseira e familiar significaria realmente algo bem particular? Talvez as imagens deixam muitos rastros e sempre existe um espectro do além-quadro. “Isso aí é punctum!”, como já dizia Barthes (provavelmente, ou não).