Filhos do Mangue
Lembranças tortuosas
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
O novo projeto de Eliane Caffé, diretora de “Era o Hotel Cambridge” (2017) e “Para Onde Voam as Feiticeiras” (2020), “Filhos do Mangue” é uma tentativa de trabalhar com uma série de temáticas dentro de uma narrativa simples, ainda que repleta de elementos, enquanto procura desenvolver as mudanças de perspectiva do protagonista e sua relação com os demais personagens, seja através da sombra de suas memórias ou das consequências de suas atitudes.
O roteiro de Luís Alberto de Abreu é desenvolvido de forma direta, com conflitos e tramas de caráter imediato, demonstrando uma preocupação constante em explicitar a importância e a insatisfação da população local com os acontecimentos que não estão representados na tela. Se, por um lado, isso funciona para criar uma dinâmica de esgarçamento nessas relações e uma possibilidade latente de embate mais direto — especialmente pela entrega desses tópicos na sequência inicial —, há uma fragilidade na organização dos acontecimentos ao longo do filme. A montagem, assinada por Eliane Caffé, busca uma estrutura de idas e vindas, exposição e dúvida, recapitulação e presente, talvez na intenção de expor uma complexidade que não existe ou de dramatizar uma situação já acentuada. Ou seja, “Filhos do Mangue” expõe à exaustão os caminhos de um trabalho mimético, que em muitos casos tem dificuldade de encontrar seu rosto, seu tom e, consequentemente, seu caminho. Ainda que esse jogo seja capaz de tornar a perda da memória algo de penosa compreensão, a necessidade de traduzir esse sentimento em algo imagético e estrutural não soma a um projeto que já possui elementos em abundância e que já encontra dificuldade em lidar com suas numerosas temáticas. Não por acaso, assume uma abordagem superficial em todas e se debruça em moralismos com alguma frequência, sem mergulhar na particularidade e na situação concreta de seus personagens e conflitos.
Desta forma, acaba sendo um esboço inicial de “Satantango”, também se enveredando por bases metafísicas — com a diferença de que aqui há um recorte regionalista e uma base mitológica cultural que traz uma representação brasileira. Por essa razão, “Filhos do Mangue” nunca parece encontrar uma estrada a ser percorrida, tornando-se confuso em suas próprias iniciativas e procurando explicitar de forma didática cada novo movimento da narrativa. Em um primeiro momento, gera desconforto por ser desnecessariamente confuso em sua linha do tempo e didático dramaticamente; com a progressão, torna-se exaustivo por utilizar o mesmo dispositivo sem nenhum tipo de maleabilidade na construção. Assim, o repertório estético de Eliane Caffé, já explicitado em “Era o Hotel Cambridge” (2017), se torna o maior mérito do novo filme da diretora, com alguns belos planos e construções imagéticas, que não encontram um diálogo orgânico na montagem, mas se destacam em momentos isolados.
“Filhos do Mangue” parece se deslocar sem diretriz, e o preço é alto: um filme morno, que queima em banho-maria, sem uma perspectiva de combustão. A trama, repleta de questões voláteis e sensíveis, se envereda por um caminho óbvio, de resolução fácil e pragmática — ainda que parcialmente trágica. Assim, sem conseguir desenvolver suas próprias questões, o projeto entra em um beco sem saída, mantendo parte do status quo e assumindo os afetos, as resoluções fáceis e a comoção coletiva como uma catarse de impacto. Porém, diferente de “Era o Hotel Cambridge”, o filme não se arrisca na estratégia de consolidar a catarse como uma base estética, como um movimento da situação concreta, e passa a apelar para a verve íntima das contradições de um personagem que, no amargor da situação, deita a cabeça em súplica ou descanso.
A falta de destaques particulares fragiliza o todo, e a montagem fragmenta uma experiência que se desenhava rica em possibilidades. Essa arritmia e descompasso soam ainda mais estranhos quando as duas cenas de impacto se apresentam através da perspectiva das crianças, demonstrando que esse universo — que carrega consigo uma gravidade tangente — não parece ter um fim ou objetivo em si mesmo. É apenas um ciclo que se cumpre, encerrando-se na redenção moral e nunca material.
“Filhos do Mangue” demonstra alguma ambição, mas patina em seus próprios objetivos e argumentos, tornando-se caótico e apelativo, seja no aspecto moral, seja no metafísico. Talvez seja nessa dança que as coisas se perdem — e é sintomático que a ambição não acompanhe o desenvolvimento.