Filhos
Entre prisões e comportamentos humanos
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival de Berlim 2024
Exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2024, “Filhos”, segundo filme do diretor sueco radicado na Dinamarca, Gustav Möller (de “Culpa”), prova que não é preciso apelar a malabarismos e manipulações algorítmicas em sua narrativa para conseguir conectar seu público à história que conta. O longa-metragem em questão aqui faz isso de forma orgânica, numa condução fluida, naturalista e sensorial do ambiente abordado: o mundo interno de uma penitenciária. Assim como em seu filme anterior, Gustav parece preferir trabalhar com lugares mais intimistas, talvez para assim fugir das distrações quase típicas do gênero de ação. Ao escolher esse caminho, adentra no universo próprio e único de sua criação, preferindo a veracidade do tempo narrativo, que se traça entre o suspense iminente e os dilemas morais. Dessa forma, “Filhos” acontece nesse interim, desencadeando características existencialistas e universais inerentes a todo e qualquer ser humano, que traz por essência ser contraditório e “sobrevivente”, mas também extremamente julgador e implacável com os outros.
Quando “Filhos” (“Vogter” jo original, que se traduz como Guardião – um que também simbólico às relações sociais) apresenta esses conflitos ético-sociais, e expõe que nenhuma ideologia pode ser cem por ponto imune, visto que esses próprios seres humanos são hipócritas e com tetos de vidros, então nós somos “convidados” a “ampliar” nossos achismos e os dosar com mais humanismo e empatia. O que vemos aqui é uma personagem (interpretada pela irretocável atriz dinamarquesa Sidse Babett Knudsen), mulher, carcereira, educada, controlada emocionalmente, tendo compaixão com os detentos, mas com pulso forte. Até que uma situação mexe com ela e muda seu humor, inclusive. Ainda não sabemos o que é. E é aí que reside a trama do filme.
“Filhos” constrói sua narrativa pelo sentir. Pela iminência da escolha de sua personagem. Por uma realista metafísica da simples presença que a causa desconforto, irritação, impaciência e raiva. É, poucas atrizes no mundo podem entregar toda essa mistura de emoções sem precisar de excessos e gatilhos. Sidse Babett Knudsen consegue. O filme então se torna situacional, em que uma ação (escolha) ganha uma reação (consequência). Nossa protagonista toma decisões mais radicais. Troca de bloco. Assume riscos de um lugar mais pesado, mais perigoso, mais bruto. “Filhos” é também uma obra quebra-cabeças. Aos poucos, nós entendemos os porquês. Só que isso não se fica mais fácil ao público. Continuamos sem poder “opinar” e formar nossos julgamentos. E assim, o longa resolve “enfrentar” o problema. Sim, a personagem principal terá trabalho, num que de “terapia de choque”, para compreender e perdoar.
“Filhos” pode também ser visto como um estudo de caso, terapêutico e antropológico, sobre as relações humanas, condutas sociais e consequências emocionais. Tudo aqui se torna um jogo de “libertar” a culpa e o luto. De um lado, alguém que pode punir e humilhar (até mesmo torturar física e psicologicamente). Do outro, o “vulnerável pit-boy” que recebe toda a ira por seus delitos. Tudo aqui é também sobre a instabilidade causada por uma situação, em que se perde a razão, a racionalidade e o discernimento ético-moral, antes empático. É impulsivo e extremamente humano o que assistimos. O que você faria se o que te causa dor estivesse em sua frente? Mas “Filhos” também é uma pegadinha. Uma armadilha. Quem controla quem aqui?
E sim, ao se construir essa ponte, com um pesar grande em minha alma, infelizmente, “Filhos” perde seu ritmo completamente. Mas consegue se recuperar com os artifícios da confissão e de sua hesitação. E entende de uma vez por todas a “regra básica” da prisão (e do comportamento individual) que diz que “algumas pessoas não podem se salvar, é assim”. Sim, Gustav Möller que todo esse jogo narrativo que criou tem dois lados bem maniqueístas. Que um deles irá ganhar. Que todo esse confronto, sentimental, co-dependente e retroalimentado, só terminará com um vencedor. Mas Gustav também sabe que independente disso, por mais que não funcione totalmente, a “salvação” e a libertação da dor virão. É aí que “Filhos” mostra sua força e potência: na impossibilidade da definição e na inexplicável confusão, subjetivismo e pluralidade do próprio comportamento humano, indecifrável, dúbio e não previsível (ainda que busquemos mesmo com toda psicanálise criar caixas padronizadas para todo mundo que vive coletivamente sua mais patológica e clínica existência).