Ficção Privada
O delírio e a especulação
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Gramado de 2020
A memória parcial permite muitos caminhos possíveis na narrativa cinematográfica, no caso do documentário em particular, há uma variação no modo de tratar dessas questões que recorre à linguagens múltiplas, tendo um pragmatismo mais direto concebido através das imagens de arquivo. Que não é o caso de “Ficção Privada” que recorre à especulação de parte do seu material.
Ainda que utilize o arquivo em momentos isolados, normalmente intermediados por fotos, o longa de Andrés Di Tella não recorre ao caminho fácil da exposição. O documentário está sempre no processo de leitura das cartas dos pais do diretor, datadas entre a década de 50 e 70, além de especular as possíveis histórias por trás de fotos e parte dos textos. O idealismo presente em parte de seu conteúdo, se reflete diretamente no campo burguês de fixação à História não material, pois está sempre na divagação, semi-delirante de um passado que só não se faz inócuo pelo sentimento ali presente. É onde reside um dos problemas da obra, que por não encontrar respostas ou resoluções estéticas para a demanda de seus almejos, torna a vagar pelo campo de especulações e sentimentalismos.
O diretor não se propõe à distanciação para compreensão de um contexto que não lhe seja caro na construção do emocional que pretende colocar em seu filme, assim, o ritmo do documentário torna-se absolutamente tedioso e contemplativo. Está claro que a segunda palavra acende o alerta dos zonasulescos em torno dessa lúdica reverberação do tempo e do espaço e isso nos traz dois problemas. Um exterior à obra, essa classe detentora do capital intelectual que urge em bocejar nas salas de cinema para filosofar e divagar sobre a materialidade da imagem, avessos ao materialismo, os burgueses se sentem incomodados quando a base econômica, factual, se volta contra eles em seus lugares na sociedade, assim sendo, é mais fácil permanecer no conforto de suas estéticas, já que ali jamais serão incomodados.
O segundo, para não divagar tanto sobre a cinefilia tacanha, diz respeito diretamente ao resultado que o filme atinge, pois esta contemplação surge como uma falta de articulação desse espaço-tempo, que se restringe à oralidade, não tradicionalista em sua concepção de remontar histórias, ou mesmo criá-las, aqui a ordem é a especulação emocional de um contexto político que nunca é consolidado em suas bases. E é aí que os dois pontos se unem, pois essa ordem da intelectualidade que não assume as rédeas da contextualização histórica, passa a se perder nas leituras das cartas, na frente do microfone, tornando todo o processo uma verdadeira terapia cinematográfica. Que almeja alguma catarse no público, mas apenas atinge uma tediosa representação de como o cineasta está mal resolvido com determinadas questões de seu passado, que aliado à essa longínqua representação sentimental de uma contemplação que apenas divaga nas memórias, apenas torna a experiência tortuosa e passa a chatear o espectador.
“Ficção Privada” possui já em seu nome, suas diretrizes. Pois especula vertiginosamente, em cima dessas factualidades, repletas de materialismo, aqui reduzidas à materialidade, e não promove absolutamente nada além desse universo privado, rico em suas contradições e monumentos de divagação burguesa. Não à toa, parte de sua conscientização surge em torno disso, uma privatização da história, como quem, por medo ou desinteresse, não procura o ato de compartilhar das nuances políticas e sociais que ali estão envolvidas. Não trata-se de uma obra como Burlan, que está disposto à consequência para saturar a verdade, mas sim de transformar sua questão em objeto cinematográfico para a apreciação de um público. E aqui, o tendencioso nome de “filme-processo” dá lugar ao terapêutico uso contemplativo da mesma vertente, agora no campo única e exclusivamente da particularidade e do subjetivo.
“Ficção Privada” é uma obra que consegue possuir características particulares, mas excede da boa-vontade do público em querer acompanhar sua narrativa. Assim, é o preciosismo da manutenção de uma cinefilia e de uma produção que não sonha jamais em sair de sua zona de conforto, na feitura e no consumo. De forma sistemática e sintomática, a obra será defendida pelos polos de intelectualóides dos críticos. Não é difícil prever. A situação é corriqueira.