Ficção Americana
Metanarrativa crítica às "histórias necessárias"
Por Pedro Sales
Na contramão de narrativas em que a população negra é explorada pela violência e sofrimento, Thelonious “Monk” Ellison, interpretado por Jeffrey Wright (“Asteroid City”) é um romancista negro que não se envereda por este caminho. Em razão disso, muitas vezes seus pares não o consideram um autor genuinamente de narrativas negras, ou pelo menos não “negras o suficiente”, por não referenciar uma temática de dor. Em meio a um bloqueio narrativo e percebendo o crescimento de obras nessa seara, o autor tenta provar como histórias das quais ele se afasta são manipuladoras e baratas escrevendo, como uma piada, um livro com essas convenções narrativas. Acontece que a obra se torna um completo sucesso, best-seller com os direitos vendidos para o cinema antes mesmo do lançamento. Essa é a premissa de “Ficção Americana“, comédia dramática mordaz dirigida pelo estreante Cord Jefferson e adaptada do romance “Erasure”, de Percival Everett, que concorre em cinco categorias no Oscar 2024, incluindo Melhor Filme.
A principal força do longa reside neste aspecto metanarrativo para provar o comentário ácido e crítico diante do mercado editorial. O personagem principal propõe que a literatura afro-americana não deva se restringir a uma celebração da miséria, ou como ele define “trauma porn“, mas sim uma janela de possibilidades narrativas que não envolvam meramente o sofrimento. E isto é de fato posto no filme que em suma trata-se de uma crítica a essa corrente e não uma representação do sofrimento, como por exemplo “Preciosa” (2009), que inclusive aparece no filme em uma propaganda de TV anunciando uma programação especial do Mês da História Negra. Para que a crítica funcione efetivamente, não só como um tratado acadêmico sobre representação negra na mídia, a obra se vale de um humor muito bem construído e delimitado. O timing cômico aqui é extremamente acertado, com excelentes piadas.
Esse tom bem humorado é visto desde o início de “Ficção Americana“, mas passa a orientar a ação a partir do momento em que Monk conhece a obra de Sintara Golden (Issa Rae). Formada em uma universidade renomada e desde sempre alguém imersa no mercado editorial, ela escreve a obra “We’s Lives in Da Ghetto”, um livro escrito com vários erros gramaticais para representar a camada mais pobre da sociedade e, claro, com dor e sofrimento da população negra. Depois disso, o humor se desenvolve pelo escalonamento absurdo das situações, cada vez mais inacreditáveis e proporcionalmente engraçadas, como o sucesso do livro-piada que ele escreve sob o pseudônimo de um fugitivo do sistema prisional ou ser jurado do próprio livro para um prêmio de Literatura. Se por um lado a comédia da obra é um claro destaque, o mesmo não se pode dizer do drama pretendido.
Cord Jefferson, talvez até pela inexperiência na direção, muitas vezes é incapaz de evocar as emoções propostas no drama familiar que se desenrola na trama. Dessa forma, quando o filme se dirige para este “núcleo”, fica menos interessante ao expor suas maiores fragilidades. A presença do irmão Cliff (Sterling K. Brown) é, no entanto, a única adição da subtrama que de fato funciona, muito pela atuação e o texto que privilegia o cômico, verdadeira força da obra. Já o romance com Caroline (Erika Alexsander) é genérico, tal qual a relação com a mãe Agnes (Leslie Uggams). A dificuldade em se equilibrar na proposta dramática e humorística, portanto, torna-se o principal problema do longa, sobretudo pela forma abrupta que se muda de um para o outro, mudança acompanhada só pela trilha sonora, e a direção de Jefferson que não consegue explorar as imagens dramaticamente. Os planos ficam em uma zona de conforto que por vezes não aproxima o espectador das questões familiares, aqui de uma forma até literal, são poucos os closes.
Apesar desse desequilíbrio flagrante em “Ficção Americana“, este é um filme que se vale de um roteiro engenhoso para criticar as representações afro-americanas pautadas em miséria e dor e quando o faz com um humor sofisticado tem seus grandes momentos. O criticismo da obra se dirige também àqueles que consomem esse tipo de produto, em especial os brancos, que consomem e compartilham da dor negra, por algum tempo, como forma de se validarem como mais “democráticos” e com consciência social por terem contato com “histórias necessárias”. Assim, parece quase uma armadilha apontar que o longa é “necessário” ao questionar esse padrão de consumo. Cord Jefferson possui, então, uma estreia consistente no texto principal da obra adaptada, a crítica. A comicidade absurda e até mesmo a inventividade de algumas cenas, como o início da escrita do livro “My Pafology”, posteriormente “Fuck”, demonstram um controle humorístico promissor, só patina quando tenta torná-lo mais denso e emotivo com o drama.