Fellini Revisitado

Fellini revisitado

Se falou muito, acertou na grande maioria das vezes

Por João Lanari Bo

Eu tinha seis ou sete anos. Naquela altura tínhamos uma empregada doméstica chamada Marcella. Ela era uma moça com um toque de animalesca. Um dia, toda a minha família tinha saído e fiquei em casa porque tinha febre. Minha mãe tinha dito à Marcella para verificar minha temperatura, de tempos em tempos. Eu estava cochilando quando Marcella puxou o meu pijama, agarrou no meu pênis e o pôs dentro da sua boca. Depois ela foi à cozinha e trouxe uma enorme beringela, que colocou entre os seios e fazia balançar com as mãos. Desde então, não consigo comer beringelas. (“Conversations with Fellini”,  por Constanzo Costantini, 1996).

A citação é construída como uma narrativa, um conto, uma história tirada da memória, como num filme de…Fellini. Esse narrador compulsivo, na maior parte das ocasiões sem mesmo disfarçar a autoria do relato, o sujeito da narração – alguém que vagueia pelas imagens carregando o desenrolar da história, alguém meio anônimo, ou alguém com uma notável capacidade de absorver esse ego narrativo e construir um personagem – é Federico Fellini, ou seu alter ego, Marcello Mastroianni.

Fellini falou muito, pela linguagem audiovisual, certamente, mas também em entrevistas, conversas, desenhos, caricaturas, sonhos. Um temperamento italiano, conforme um desses clichês que associam uma certa eloquência mediterrânea aos italianos – pelo menos boa parte dos italianos. Na Itália mesmo, os clichês variam: para boa parte da elite intelectual do norte do país, Fellini se assemelhava a um provinciano, em contraponto ao cerebral Antonioni. No campo político também não era fácil: quando começou a afastar-se da matriz neorrealista, foi atacado pela crítica de esquerda, acusado de ambivalência e falta de engajamento. Como conseguiu sobreviver a tudo isso e construir uma marca cinematográfica extremamente poderosa é prova de que, se falou muito, acertou na grande maioria das vezes.

Maciste all’inferno

Maciste all’inferno

Como podemos nos aproximar da fala felliniana? Uma fartura de fontes, que configuram um percurso de expressão transbordante, excessivo, carnavalesco – se tivesse nascido em São João de Meriti, Fellini seria diretor de Escola de Samba, sem dúvida. Mas nasceu em Rimini, e ali vivenciou as experiências que iriam conformar seu inconsciente. Aos seis anos o pai, Urbano Fellini, levou-o ao cinema para assistir “Maciste all’inferno”, um colossal drama… dantesco:

Maciste é um musculoso ex-escravo que desce aos infernos, seduz a mulher de Plutão e sua enteada, e retorna à superfície terrestre depois de inúmeras peripécias sensuais e guerreiras, seguidas de uma última punição antes da redenção.

E a primeira sessão do cinema?

Meus primeiros filmes, eu os vi no cinema Fulgor. Qual foi o primeiro? Tenho certeza, lembro precisamente porque esta imagem ficou comigo tão profundamente que em todos os meus filmes, tentei fazer de novo. O filme chamava Maciste no inferno. (…) eu me lembro de uma mulher enorme com a barriga nua, com o umbigo de fora, seus olhos escuros malignos lançando raios, e, com um gesto imperioso de seu braço, lançou em torno de Maciste, ele mesmo seminu, um círculo de línguas de fogo.

É um filme felliniano, por excelência, que se inscreveu no imaginário do jovem espectador. Imaginário, para o psicanalista Jacques Lacan, é algo como um espectro de imagens que precede a aquisição da linguagem na experiência da criança e que continua a coexistir com ela na esfera adulta, retornando em memórias esparsas: a ordem imaginária, a imaginação, privilegia fantasias e sonhos, prioritariamente visuais e secundariamente auditivos, e apenas raramente aliados ao tátil, gustativo e olfativo.

Fellini puro e duro. Sabemos que o cineasta foi analisado em um curto período por um analista freudiano, rompeu, e ligou-se a um junguiano, o Dr. Ernst Bernhard, que o estimulou a desenhar os sonhos, ao acordar – o sonho, dizia Lacan, é a narrativa do sonho.

Sonhos, Seios

Apesar de ter nascido perto do mar num local onde as pessoas vinham de toda a Europa para nadar, nunca aprendi a nadar. Num dos meus sonhos mais antigos, um sonho recorrente, eu estava a afogar-me. Mas, sou sempre salvo por uma mulher gigante cujos enormes seios são tão enormes, mesmo à luz do seu tamanho escultural. No início, quando tinha esse sonho, ficava um pouco assustado, mas após um tempo ficava a esperar pela gigante, que viria tirar-me de rompante da água e abraçar-me entre os seus seios. Não havia lugar no mundo para estar melhor que aquele, espremido entre aqueles enormes seios. À medida que o sonho persistiu, o afogamento quase que não me vinha à mente, porque eu estava confiante que seria resgatado a tempo, e que a excitação erótica de estar entre os seios dela seria de novo minha. (“Eu, Fellini”, por Charlotte Chandler, 2001).

Fellini

(desenho de Fellini, do sonho supracitado)

Nos seus filmes, Fellini repetidamente submete seus personagens masculinos ao cerco da plenitude materna, na forma de seios e nádegas esmagadores de suas personagens femininas. Esse gigantismo materno frequentemente se manifesta nos corpos bem dotados de suas atrizes, sintetizados e parodiados em Amarcord pela vendedora na tabacaria cujos seios sufocam um menino oprimido, Titta. Mas não são somente seios:

Tive um sonho há trinta anos que resume o significado da minha vida. Nunca contei isto a alguém. Eu era chefe do aeroporto. Era de noite. Uma noite repleta de estrelas. Estava atrás da minha mesa, numa grande sala. Através da janela observava os aviões a aterrarem no aeroporto. Um enorme avião tinha aterrado, e eu era chefe do aeroporto e procedia ao controle dos passaportes. Todos os passageiros do voo estavam à minha frente, esperando com os seus passaportes. Subitamente, vejo uma figura estranha – um velho homem chinês com um aspecto antiquado, vestido com trapos, mas aparentando um ar régio, e exalando um odor terrível. Ele estava à espera para entrar. Ficou à minha frente, mas não falava uma única palavra. Nem sequer olhava para mim. Estava totalmente absorto nele mesmo. Olhei para baixo, para a pequena placa na minha mesa, onde estava escrito o meu nome e atribuía-me o título, mostrando-me que eu era chefe. Mas, não sabia o que fazer.

Estava com medo em permitir sua entrada porque ele era tão diferente, e eu não o compreendia. Estava tremendamente receoso que se permitisse sua entrada, ele iria romper minha vida convencional. Deste modo, retirei-me sob uma desculpa, que era uma mentira, que expunha todas as minhas fraquezas. Menti como mente uma criança. Eu não conseguia chamar para mim a responsabilidade. Disse, “Não tenho o poder, veja. Não sou mesmo o responsável daqui. Tenho que perguntar aos outros.” Baixei a cabeça com vergonha. E disse, “espere aqui, eu já volto.” Saí para tomar a minha decisão, e acabei por não tomá-la. Ainda estou a tomar a decisão e todo o tempo penso se ele ainda estará lá quando eu regressar. Mas, o verdadeiro terror, é que não sei se tenho mais medo do fato de ele ainda lá estar, ou de ele já não estar mais lá.

Tenho pensado nisto constantemente ao longo destes trinta anos. Entendi muito bem que havia qualquer coisa errada com o meu nariz, não com o cheiro dele; até agora ainda não fui capaz de me obrigar a voltar e permitir a sua entrada, ou descobrir se ele ainda está esperando (Chandler, 2001).

Sonhos, Filmes

Alguns sonhos migraram sem escalas para as telas. A minúcia da descrição abaixo, de um dos sonhos mais famosos, que virou matéria cinematográfica, mistura os sentidos e produz uma narrativa, digamos, tátil:

Quando era jovem tive este sonho muitas vezes. É um sonho de expressão sexual. O sonho persistiu até a meia-idade. Recentemente, tenho tido menos vezes, apenas esporadicamente, e suponho que as razões são óbvias. É uma das minhas memórias sensuais mais nítidas da infância. É baseado num acontecimento que realmente aconteceu, e usei-o em 8 ½. Sou uma criança, numa banheira, e está uma mulher a me dar banho. É uma banheira de madeira antiga, tal como os que estavam no terraço da casa da minha avó, do gênero que nós crianças usávamos para pisar as uvas para o vinho, com nossos pés despidos. Antes de pisarmos as uvas tínhamos que lavar os pés. Depois nós ainda conseguíamos cheirar o resíduo das uvas fermentadas quando tomávamos banho na banheira. Quase fazia com que nos sentíssemos bêbados. Por vezes, eu tomava banho com diversas crianças, pequenos meninos e meninas, todos nus. A banheira tinha profundidade, a água ficava acima da cabeça, que era a minha definição de profundidade. Todas as outras crianças sabiam nadar. Eu era o único que não sabia. Uma vez quase me afoguei. Fui puxado pelo meu cabelo.

No meu sonho, sou tirado da banheira, o meu pequeno corpo molhado, nu, enrolado em toalhas grandes por muitas mulheres com seios grandes. As mulheres nos meus sonhos nunca usam sutiãs, nem eu penso que existam sutiãs tão grandes. Elas embrulharam-me nas toalhas. Elas agarram-me contra os seus seios, puxando-me para cima e para baixo para me secar. A toalha roçava contra a minha pequena coisa, que se movia de um lado para outro alegremente. Era uma sensação tão boa, espero que nunca passe. Por vezes, as mulheres brigavam por minha causa, o que eu também gostava. Passei a minha vida procurando pelas mulheres da minha infância que me enrolavam nas toalhas. Atualmente, quando tenho o sonho, necessito de mulheres mais fortes. Na vida real, a Giulietta faz para mim, mas as toalhas fazem uma grande confusão no banheiro (Chandler, 2001).

Foram anos de sonhos desenhados, em sua maioria com legendas, um fluxo do inconsciente muitas vezes transportado para a tela, como no caso de 8 1/2. Desta prática resultaram dois livros: o primeiro, de 254 páginas, contem sonhos entre novembro de 1960 e agosto de 1968. O segundo tem 154 páginas, com datas entre fevereiro de 1973 e 1982 (e algumas após 1990). Este intervalo de 4 anos faz especular que haja um terceiro livro escondido por aí.

Federico não permitia que se vissem seus desenhos. Alguns poucos desses sonhos foram publicados, discretamente, em revistas de quadrinhos. Editoras japonesas quase conseguiram publicá-los, em 1990. Fellini gostou da ideia de ver seus sonhos escritos em japonês, o que os faria ainda mais misteriosos, mas acabou desistindo da ideia. Depois de idas e vindas com herdeiros e a burocracia italiana, a Fundação Fellini conseguiu retirar os livros do cofre e publicá-los em 2008.

Fellini

A palavra e a imagem

Os italianos desconfiam do tradição literária anglófona incrustada no cinema norte-americano. Na tentativa compensatória de consertar essa relação, a cultura cinematográfica italiana, com sua rica tradição nas artes visuais e no espetáculo operístico, sua ênfase no design e sua intensidade peculiar, passou a orientar-se fortemente em direção à expressão visual. De uma perspectiva anglo-americana, a cultura italiana aparece como um exercício de sobredeterminação semiótica.

Fellini interpretou essa subjugação da natureza visual do cinema à palavra em termos especificamente culturais: Os anglo-saxões são dementes sobre o assunto. Uma loucura (“Fellini, a Life”, por Hollis Alpert, 1988).

Isso não significa, naturalmente, uma rejeição à literatura – ao longo da sua carreira, foram várias adaptações literárias, desde os tempos em que começou a escrever roteiros. Satyricon é um estupendo exemplo de transposição literária, um texto fragmentário que funcionou perfeitamente na narrativa não-linear que o diretor passou a utilizar na década de 1960. Também em seu período de realismo poético, como dizem os críticos, o espírito literário se fazia presente: na preparação de Noites de Cabíria, a colaboração de Pier Paolo Pasolini nos diálogos ocorreu em função do seu livro Ragazzi di vita, publicado em 1955 – Fellini gostou do livro e telefonou para o escritor, interessado na dicção da periferia de Roma utilizada no romance. (Pasolini colaborou também em A Doce Vida)

Frank Burke, um crítico que escreveu três livros sobre Fellini, vê a carreira do diretor como uma progressão do realismo à representação e à significação, à medida que a conexão entre significante e significado dentro do signo se torna progressivamente tensa.

Como se deu essa progressão?

Da sua formação cinematográfica, Federico salienta duas instâncias fulgurantes, Irmãos Marx e Buster Keaton. Em suas palavras: Os irmãos Marx me deslumbraram. Estes foram meus patrocinadores espirituais. Já Buster…

Buster Keaton me agradava mais do que Charlie Chaplin (…) sua obstinação parece sugerir-nos um ponto de vista, uma perspectiva completamente diferente, quase uma filosofia diferente, ou uma religião diferente, que tudo revira e torna irrisório e inútil todas as ideias e premissas congeladas em um sistema de conceitos inalteráveis: um ser engraçado, que vem diretamente do budismo zen (“Fellini, Fazer um Filme”, 2000).

Ao se mudar para Roma em 1939, o futuro diretor começou a escrever artigos e publicar caricaturas. Foi quando entrevistou o popular ator Aldo Fabrizi, de quem se tornou amigo e colaborador. Em 1944 apresenta Fabrizi a Roberto Rossellini, e contribui no roteiro de um clássico que dispensa apresentações – Roma, cidade aberta. E, em 1946, participa intensamente de outro clássico de Rossellini, Paisá.

O impacto que a estética neorrealista teve na produção cinematográfica é notório – nosso Cinema Novo, por exemplo, muito deve aos filmes do pós-guerra realizados na península italiana. Uma linguagem que se aproximou do documentário, retendo aspectos ficcionais, inspirada no realismo poético de Jean Renoir e Jean Vigo – e um cardápio de temas que denotam extensa preocupação com  o social. Os filmes abordavam assuntos como: fascismo, a  guerra e suas consequências; problemas sociais no campo; desemprego e subemprego urbanos; abandono dos jovens e idosos; a condição da mulher; e a relação do homem com a religião.

Rossellini foi o mentor de Fellini no cinema, assumidamente – com o tempo os dois se afastariam, mas Fellini nunca deixou de reconhecer a ligação. Outra participação intensa que teve em uma obra de Rossellini foi em Francisco, Arauto de Deus, de 1950, onde Federico fez assistência de direção, neste que é um filme sobre o santo da paz, Francisco, com elenco quase todo não-profissional (monges franciscanos), à exceção de Aldo Fabrizi.

Fellini

Mulheres e Luzes, Noites de Cabíria

Fellini colaborou também com Pietro Germi e Alberto Lattuada, ambos diretores de destaque do cinema italiano do pós-guerra. Em 1951, vem à luz o primeiro longa-metragem, Mulheres e Luzes (Luci del varietà), dirigido por ele em parceria com Lattuada, com as respectivas esposas (e amigas) nos principais papéis – Carla Del Poggio e Giulietta Masina.

Finalmente, um detour insólito abre uma possibilidade de um voo solo: em 1949, Michelangelo Antonioni realiza um curta-metragem, L’amorosa menzogna, sobre fotonovelas. Pouco depois, escreve um argumento para longa-metragem sobre o assunto, que acabou virando roteiro nas mãos de Fellini e parceiros, Tullio Pinelli e Ennio Flaiano. Antonioni não gostou do que leu, mas adoeceu e foi hospitalizado: o filme acabou nas mãos de Fellini, em 1952 – Lo sceicco bianco – no Brasil, Abismo de um sonho.

Dois trabalhos iniciais soberbos, incrivelmente maduros – um dos biógrafos sublinha que Fellini atrasou voluntariamente sua estreia na direção, indo faze-lo somente aos 30 anos, para começar com segurança estilística. Em ambos, a sutil desconstrução do espetáculo se insinua, e em consequência a conexão entre significante e significado dentro do signo se torna progressivamente tensa – como dizia o exegeta Frank Burke, referindo-se à produção posterior de Fellini, mas esquecendo-se de salientar esse aspecto já nos primeiros filmes do diretor.

A sequência é magistral – o ambiente dos boas-vidas de Rimini em Il Vitelloni, de 1953; o road movie sentimental que é La Strada, com o casting genial de Anthony Quinn ao lado de Giulieta, de 1954; o trágico-irônico Il Bidone, que teria sido mais um clássico se Humphrey Boggart tivesse atuado, como queria Fellini; e o fulgurante Noites de Cabíria, de 1957, com seu mapeamento linguístico e etnográfico da Roma moderna, numa narrativa praticamente sem causalidade diegética – uma história, enfim, que não sai do lugar, uma imersão no ambiente que cerca Cabíria e seus impasses amorosos.

A Doce Vida, 8 ½…

Três anos sem filmar, uma crise pessoal e ao fim um marco no cinema, A Doce Vida, de 1960 – marco também na própria vida italiana, signo de modernidade do país que experimentava um boom econômico sem precedentes. Modernidade no comportamento dos personagens, na precisão da montagem e composição da imagem, no controle ideológico dos signos, na crítica sutil e impiedosa da manipulação popular calçada na crença religiosa. Não é à toa que o mundo católico, com poucas exceções, virou-se contra o filme: festas, noitadas, sexo sem compromisso chocaram os conservadores.

Até o pai de Marcello, o jornalista alter ego do diretor, participa do festim – uma alusão direta ao próprio pai de Fellini, Urbano Fellini, igualmente um caixeiro viajante e ausente na vida familiar, morto em 1956. Italo Calvino dizia que Fellini “detestava” os intelectuais, e fez com que o personagem Steiner cometesse suicídio: Marcelo hesita entre o jornalismo sensacionalista e a literatura, e acaba como agente publicitário. A sequência na Fontana di Trevi, com Anita Ekberg e Marcelo, é das mais famosas da história do cinema.

A Doce Vida foi, sobretudo, a ruptura definitiva de Fellini com o passado neorrealista e dos filmes que realizou na década de 1950, começando pelo mentor Roberto Rossellini, que repudiou o discípulo.

Fellini

A noção de Fellini como polemista anticlerical foi certamente estimulada por algumas das críticas contemporâneas a La Dolce Vita. O jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano, classificou-o como “execrável”: os católicos foram proibidos de assisti-lo. Críticos católicos e não-católicos, tanto na Itália quanto fora, debateram veementemente se o filme era imoral, ou melhor, uma condenação da imoralidade que pretendia representar. Pasolini pensava diferente: para ele, o filme, e a perspectiva estética de Fellini em geral, eram de fato expressivos de uma sensibilidade moral católica convencional e paroquial, sendo o filme o “produto mais elevado e absoluto do catolicismo” de sua época.

As tentações do Dr. Antonio, episódio que Federico dirigiu em 1962 para o longa-metragem Boccaccio 70, é um exercício de realidade aumentada, para usar um jargão tecnológico contemporâneo: uma ampliação do corpo de Anita Ekberg, a um só tempo libidinal e opressiva, desejo e castração. As aventuras erótico-moralistas do escritor florentino Boccaccio, escritas durante a peste negra que assolou o mundo em meados do século 14, caíram como uma luva no imaginário felliniano e sua crítica mordaz do fetichismo publicitário.

E veio 8 ½, a explosão da subjetividade, filme que constrói sua linguagem – ou melhor, sua metalinguagem – a partir das referências oníricas do realizador.

No caso de 8 ½, aconteceu-me uma coisa que sempre receei que acontecesse, mas quando aconteceu, foi mais terrível do que eu tinha imaginado. Fui acometido de um bloqueio de realizador, tal como o bloqueio de escritor. Eu tinha um produtor, um contrato. Estava na Cinecittà, e toda a gente estava pronta e esperando por mim para fazermos o filme. O que eles não sabiam é que o filme que eu ia fazer tinha fugido de mim. Os cenários estavam prontos, mas eu não conseguia encontrar a minha sensibilidade, o meu espírito sentimental (Chandler, 2001).

A repercussão que 8 ½ obteve não tem precedentes na história do cinema, para um exercício experimental, com alta carga de subjetividade – e circulando na esfera de entretenimento, notoriamente de perfil conservador e avesso a propostas pautadas pela transgressão dos códigos habituais da linguagem cinematográfica. Ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro.

E Julieta dos Espíritos, primeiro filme a cores de Fellini. Giulieta Masina volta ao epicentro da história: imersa num mundo cheio de confortos, abandona o marido após infidelidades e evocações de espíritos, cercada de astrólogos, socialites, amigas, mãe e irmãs espalhafatosas. Glauber Rocha conta sobre sessão prévia que presenciou, em 1964, na presença do realizador, levado pelo Padre Arpa: Federico queria mostrar o filme para o amigo religioso, seu melhor contato para auferir o pulso da Igreja Católica.

Uma deriva psicodélica aconteceu em Toby Dammit, episódio que Fellini dirigiu em 1968 no longa Histórias Extraordinárias, com Terence Stamp no papel de um ator shakespeariano – que se afunda na carreira devido ao alcoolismo, e faz um pacto com o Diabo para voltar a ter sucesso. Christopher Sharrett, para quem o curta-metragem Toby Dammit é um ponto de virada na estética felliniana, sugere que o diretor estava frustrado com a crise de representação, e que sua estilização ostensiva é uma tentativa de envolver o público em uma meditação sobre a capacidade do artista (cada vez mais ineficaz) de manipular a linguagem com os procedimentos convencionais do cinema. Um Fellini cada vez longe do humanismo e mais cético em relação à arte, à tradição e à representação, tendência que se anunciava nas produções de década de 1960, e que iria se aguçar com Satyricon, realizado em 1969.FelliniSatyricon, Roma…

Satyricon é sem dúvida o filme mais carnavalesco de Fellini, no sentido da sobrevivência do mundo pagão em um universo cristão, que Mikhail Bakhtin identificou em Rabelais. O discurso carnavalesco em Fellini seria, assim, concebido como uma reação radical face à sociedade contemporânea, que estende a dicotomia entre alta e baixa cultura, em termos de comportamento, à prática do discurso social. Uma das vertentes carnavalescas desse filme-pandemônio é a acumulação de ritmos e sons na trilha musical, onde se sobrepõem músicas populares e eruditas, de origens díspares: japonesa, africana, afegã, tibetana, cigana, concreta e dodecafônica. E no plano linguístico: em Satyricon podemos ouvir latim, grego, alemão, italiano e idiomas africanos.

O banquete como princípio utópico também é um traço carnavalesco: ao final do filme, o poeta Eumolpio, professor de retórica, deixa sua herança para aqueles que irão comer seu cadáver, e promove um festim antropofágico de seus restos mortais.

Na sequência dos seus filmes cult, (1963), La Dolce Vita (1960) e Satyricon (1969), Fellini resolve confrontar o poder do Vaticano na cidade eterna, em seu filme de 1972 – Roma de Fellini. O (falso) documentário se desenrola com a exuberância característica do diretor: um épico semiautobiográfico que nos leva de um bordel no distrito da luz vermelha de Roma às ruas de hippies errantes e crianças floridas, e logo aos jantares noturnos ao ar livre regados a espaguete – para finalmente extravasar, através de um desfile de moda, a apoteose carnavalesca em cima do fervor profundamente religioso da capital italiana. A sensação, dos espectadores/adoradores do desfile, é de histeria coletiva: a pressão aumenta na passarela de estilos e confeitos eclesiásticos, culminando com uma miragem cegante do Papa, suprema e divina,  brilhando no esplendor barroco.

Roma pode ser lido numa chave lacaniana, ao invés do tradicional arquétipo junguiano que se costuma atribuir ao diretor, que ele próprio fazia questão de reiterar (vide as conversas com o Dr. Bernhard). Um de seus exegetas recentes, William Van Watson, afirma que o cinema de Fellini exibe não apenas uma sensibilidade semiótica italiana, mas também uma mutação do paradigma lacaniano que é, de forma distinta, o seu.

Por exemplo: a sequência da visita à obra do metrô. Quando a broca fálica invade o útero das antigas catacumbas romanas, o que vemos é um apagamento do imaginário, tal como representado visualmente nos afrescos romanos antigos, que desaparecem rapidamente em contato com o ar. A agressividade da ordem fálica destrói o frágil imaginário. Como disse o diretor, referindo-se a Roma: já não consigo distinguir passado, presente e futuro. O inconsciente não tem tempo.

A sequência do desfile de moda no Palácio da princesa Domitilla também pode ser uma lacanagem: com uma verve avassaladora, o significado da espiritualidade católica é esvaziado pelo escárnio dos significantes apresentados, começando pelo pó das pinturas dos cardeais mortos e chegando ao cardeal-visitante, um morto-vivo carnavalizado. Luzes, figuras excêntricas, aplausos e comentários do mestre de cerimônias inserem irremediavelmente a Igreja numa sintaxe do desfile de moda, como sugere Watson. Assim reagiu Anna Magnani, o símbolo-vivo da cidade-eterna, em uma rápida cena de Roma: Federico, desconfio de você, vai dormir.

Recentemente, o Museu Metropolitano de Arte de Nova York, em 2018, fez uma grande exposição intitulada “Corpos Celestiais: Moda e Imaginação Católica” – sinal da maior visibilidade e onipresença da sequência do desfile de moda imaginada por Fellini.

Fellini

Amarcord, Cidade das Mulheres…

O assunto de Amarcord, sugere o crítico e cineasta Pascal Bonitzer, é o gozo: o gozo, bien entendu, inscrito na história, na memória, e narrado através de uma mise-en-scène fragmentada, datada e não-linear. Pode ser o fascismo e seus rituais provincianos, os seios fartos da vendedora, o fetiche da mulher no cinema, o primo louco que se esconde na árvore: a memória é labiríntica, construída por evocações pulsionais, em uma palavra, onírica. O título Amarcord é uma referência à tradução fonética da expressão m’arcord (eu me lembro), usada na região da Emilia-Romagna, onde o diretor nasceu. Federico sempre negou que o filme fosse uma autobiografia. E não pode ser: como diz Bonitzer, a narrativa sem progressão desdramatiza e distancia, veicula o gozo ao mesmo tempo que o inscreve na ordem da ilusão, designando-o como contingência, acaso – em última análise, roubando-lhe o sentido. É memória, mas em fluxo inconsciente. Amarcord é de 1973.

Explicando o casting de Donald Sutherland em Casanova, de 1976, Fellini disse: Eu gosto do Sutherland porque ele parece não ter nascido…eu queria um personagem que ainda não nasceu, ainda está na placenta. O filme, que o diretor realizou por contrato – não foi um projeto pessoal, como era sua marca – é uma desconstrução do mito literário do famoso protagonista latino, inspirado (de longe) nas memórias de Casanova – que o diretor abominava, para ele testemunho do vazio do seu autor – e calibrado para coisificar o prodigioso copulador em um mero pássaro de brinquedo, cujo movimento semelhante ao pistão o acompanha em suas aventuras. Na pré-produção, Fellini descartou o roteiro de Gore Vidal pelo excesso de falas em detrimento do visual.

Ensaio de Orquestra, de 1979, é uma divertida alegoria da política italiana, como disse o realizador. É uma alegoria, mas abstrata, compacta, resumida a uma única situação. Um renomado maestro, nunca nomeado, tenta ensaiar um clássico igualmente não identificado na diegese do filme – de fato, a última composição do fiel e talentoso Nino Rota para Fellini – mas é cercado por todos os tipos de interrupções, disputas, desafios. As individualidades se diferenciam, se rebelam e se coletivizam, inflamadas pelo representante sindical. Uma situação leve, quase uma gag circense, produzido pela RAI e narrada por uma equipe filmando um documentário dentro do filme.

Logo em seguida, um dos filmes mais polêmicos do realizador: Cidade das Mulheres, de 1980. Marcello Mastroianni é o significante cinematográfico por excelência de Fellini, exibindo aos quatro ventos sua ansiedade no desempenho masculino, com frequência em termos sexuais. Símbolo fálicos povoam a cenografia e o imaginário do personagem, gerando uma acumulação interminável de objetos assemelhados: obeliscos, Vênus sem braços, touros desenhados, slides de falos exagerados de fantasias de comédia antiga – todos servindo como compensação inútil, ao nível do significante, para sua própria virilidade. No limite, emerge a fêmea-fálica: em forma de vagina dentata, deusa-diva com o tridente fálico de Netuno, uma mulher Marte na lareira que ataca sexualmente Marcello. Poucos entenderam, e as feministas não pouparam o calejado diretor. A Cidade das Mulheres pode funcionar como estudo chave de Fellini sobre a mulher fálica.

Fellini

E la nave va, Entrevista…

E la nave va – o próprio título desse filme de 1983 tornou-se uma expressão coloquial para indicar que a vida segue seu curso, a despeito das dificuldades. Cenários artificiais e majestosos, mar de celofane, um rinoceronte e o limiar da 1ª guerra mundial estruturam a despedida de uma cantora de ópera, cujas cinzas serão lançadas do transatlântico. Italo Calvino viu no enredo uma variação do tema do fim do mundo, presente em outros filmes de Fellini, pois em E la nave va compreendemos que o fim do mundo é nosso habitat natural, como se não pudéssemos imaginar qualquer outra maneira de viver. O impacto entre vários mundos é personalizado em termos de tipologias de linguagem: alemão, que representa o tom seco da autoridade imperial; servo-croata, o mundo anônimo de refugiados de guerra; Italiano, marinheiros;e  o mundo dos artistas; russo, italiano, Inglês, francês ou turco. Uma polifonia carnavalesca.

Até o pai-ausente, Urbano Fellini, reaparece num fragmento psicanalítico. A parede da fábrica de macarrão Pantanella foi utilizada na cenografia, pelas suas dimensões. Segundo Fellini, foi onde seu pai trabalhou quando passou por Roma ao retornar dos trabalhos forçados na Bélgica, depois da guerra, em 1918. Quando trabalhava na fábrica, conheceu a mãe do diretor, Ida Barbiani, e a raptou.

O enredo de Ginger e Fred, de 1986, começa e termina na estação ferroviária de Roma onde está pendurado, acima da multidão de passageiros, um pé de porco gigante. Filme nostálgico e evocativo da dupla de dançarinos/sapateadores de Hollywood, é também uma grotesca associação entre sexo e comida. Amélia (Giuletta Masina) e Fred (Mastroianni) são dois significantes-simulacros que se reencontram anos depois da aposentadoria para participar de um show na TV, em si mesmo também uma grotesca celebração de consumo farsesco, um festim de excessos comandado pela lógica publicitária. Sobrou até uma alusão ao “Cavalieri” Berlusconi, à época Primeiro-Ministro italiano e dono de uma rede de TV, nomeado no filme como “Cavalieri” Fulvio Lombardoni.

Durante a produção, a animosidade de Fellini contra a televisão era concreta: empreendeu uma batalha legal para banir a publicidade que interrompia seus filmes quando exibidos na TV, quando eles eram transmitidos nos canais do político bilionário. Fellini perdeu, mas passou os últimos anos escrevendo um roteiro que nunca foi filmado, sobre uma Veneza distópica transformada pelo magnata em cenário para filmar anúncios: o Grande Canal passaria a se chamar Canale 5, nome da emissora de Berlusconi.

A Entrevista, de 1987, é um filme-síntese, se é que é possível falar de síntese em uma obra tão diversa. Neste filme, além de desvelar artifícios corriqueiros de suas produções, como os densos nevoeiros, Fellini explora ao máximo a técnica de usar reportagens documentais como acelerador da história – uma câmera de TV, que circula por toda parte, fazendo perguntas a criadores e participantes (no caso, uma equipe da TV japonesa). A síntese tem um eixo pessoal: o início da história ou seu fim é marcado pela presença do jovem Federico, que remete ao renascimento da atividade criativa do próprio diretor – e a Cinecittà funcionando como uma espécie de útero cinematográfico.

Fellini revelou que, à época em que realizou Entrevista, no alto dos anos que já tinham passado, adquirira:

uma melhor compreensão dos meus pais em relação à visão que eu tinha na minha juventude. Eu tinha começado a me sentir próximo do meu pai, e desejava ardentemente poder dizer isso a ele. Também compreendi melhor a minha mãe, já não estava ressentido com as nossas diferenças.

Mastroianni e Anita Ekberg, além de colaboradores habituais, ancoram o filme no imaginário felliniano. Passado e presente se interpenetram: como disse Peter Bondanella, o filme fornece ao espectador razões mais do que frágeis para sustentar sua narrativa. A cronologia dos acontecimentos se mantém apenas pelo fato de que todos eles se originam da imaginação fértil do diretor.

E veio a obra derradeira, A Voz da Lua, de 1990. O mal-estar da modernidade – entronização do consumo, fetiches tecnológicos – atravessa a pequena cidade da Emília-Romagna, onde a trama desenrola-se em meio a uma frágil conexão entre três personagens masculinos, que por acaso ali habitam. As mulheres, ao contrário, parecem monstruosas justamente por causa da capacidade de se adaptar aos valores pós-modernos de consumo, reprodução e simulação. Mas também excedem na sexualidade, oscilando do cômico ao grotesco. Até a lua torna-se um personagem, uma tela-fetiche, evocada pelos poemas de Leopardi.

Federico faleceu em outubro de 1993. Giuletta, em março de 1994.

Fellini

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