Feio, Eu?
Manifesto Carioca
Por Vitor Velloso
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“Feio, eu?” parte de uma premissa tão hiperbólica e anárquica quanto a proposição formal que a obra assume. Salta de um ponto ao outro sem uma lógica aparente, reconhecendo em sua estrutura um teor subjetivo que carrega a naturalidade do centro carioca em meio ao caos cultural que o mesmo representa. Vulgariza a imagem enquanto espectro único, assume perspectivas diversas, tempos opostos, situações banais que recorrem ao vanguardismo, antes inovador, que se auto proclama libertário, pois se desprende dos fios comuns que se capilarizaram na sociedade. Com neologismos visuais e neoformalismos escritos. Sylvio Lanna e seu cinema caligráfico enquanto manifesto da Helena Ignêz de uma profunda compreensão da pluralidade.
E não faz isso a partir da recorrente proposta de quebrar a forma para se vangloriar da cinematografia semi esquizofrênica, faz isso por uma ambição histórica, cultural e artística que compreende a oralidade como ponto essencial da formação identitária de todos aqueles indivíduos em meio coletivo. Com a necessidade de abarcar múltiplas faces desse Rio de Todas as Tribos, ou Lapa/Cinelândia, não poderia deixar de haver as comuns referências marginais ali, a própria Helena revisita protótipos antes transgressores, as atrizes recorrem a convulsões de impulso da fome e da dignidade humana, separando o orgulho de todo esse processo.
Determinados planos lembram o auge de um movimento tão dicotômico e bipolar como o complexo de Frankenstein e sua criação a partir de uma osmose cultural e política, que segregou em uma breve interpretação morfológica e semântica de uma tese europeia que vinha de uma necessidade de reconhecer no cinema uma arte tão universal que corrobora para a simplificação de determinados lampejos aos analfabetos. Ao passar cerveja no lábio, falar do sapato, enquanto uma pessoa lê Durkheim logo atrás, Helena abre o leque da variabilidade social em camadas sólidas que são compreendidas em espectros de projeção posteriormente. O debate passa pela sombra de uma faca na boca à destruição do moralismo enquanto tom popular de proliferação do capital em meio urbano.
A potência de “Feio, eu?” surge quando a diegese, aqui permitida a liberdade de neologismo vulgo ignorância do sinônimo burocrático, se cumpre em unir aqueles corpos em simbiose de janela de Helena. Com essa diversidade tão profunda, alheia, quase pueril de um Rio de Janeiro que se compreende na pele e no tato Histórico que tantos ousariam desconhecer. Barthes chora em posição fetal por jamais compreender o caos de uma crônica por minuto. Strauss há de erguer o ego perante o esgoto humano em anti-antropologia geográfica. E Kant ei de falar sem a pompa da que paril em uma pia de gafieira o que viria ser conhecido como o imperador do subúrbio. Morto em dente e implantado na memória da eternidade.
A libertinagem é uma aderência de civilização, o orgulho é a imortalização do ego enquanto estoicidade plástica e a vulgaridade é a urgência terceiro mundista de berrar em surdez profunda ao cego que não escuta. E quem melhor que Helena pra transgredir a imagem e fragmentar cada ponto e cada adjunto em células isoladas que funcionam como um corpo regido por….caos.
Não que “Feio, eu?” seja caótico por natureza, é o contrário, é o excesso que organiza tudo em nada. O processo não poderia ser inverso, se não haveria a desnutrição do discurso e conscientização da fragilidade. Palavra essa que surge a partir do pensamento mesquinho dos que ousaram cruzar os mares e aplicar seus dogmas. Dogmatismo é atraso, reacionarismo e transformar vinho em água.
Problemático em ritmo, o filme acaba cansando o espectador ao longo da experiência e detém a maior parte do tempo para a localização dos olhos de quem assiste. Mas ainda assim, é recompensador ao propor essa energia orgânica da diretora, que não pretende cessar as convulsões, apenas ampliar seu tamanho para que o quadro possa ser visto de distâncias diversas. E a permissão que o longa dá, pode ter um alcance encurtado, mas é prazeroso ao vislumbrar o frívolo da hecatombe terceiro mundista se iniciar e terminar em Helena Ignêz.
Não trata-se de conceito ou academicismo, mas de atitude perante ambas as coisas. Não trata-se de tradução mas de pulso enérgico que se compreende através do paladar visual.