Favela do Papa
Remoção no morro, não
Por Pedro Sales
Durante o Festival É Tudo Verdade 2023
O Morro do Vidigal fica localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro, situado entre dois bairros nobres cariocas: Leblon e São Conrado. A diferença socioeconômica entre os espaços levou a um projeto político de remoção dos moradores da favela no final dos anos 70. “Favela do Papa“, documentário dirigido por Marco Antonio Pereira e integrante do Festival É Tudo Verdade 2023, propõe o resgate histórico da luta da comunidade em defesa do direito de morar e o papel conciliador que a presença do Papa João Paulo II, em 1980, teve no movimento. “A Zona Sul não era para pobres”, diz um dos entrevistados do longa. Em uma manhã qualquer, famílias poderiam ser surpreendidas com uma marcação em suas portas “FL 13”. O sinal, que abrevia Fundação Leão XIII – organização nomeada em homenagem ao papa –, significava uma só coisa: o morador seria removido para uma região afastada (Vila Kennedy ou Cidade de Deus) e seu barraco seria derrubado. Sim, a zona Sul não era para pobres.
O que a Fundação e o estado do Rio de Janeiro, à época governado por Faria Lima (aquele mesmo que dá nome a avenida em São Paulo), alegavam era que existia um risco claro de deslizamento no morro. Na primeira chuva, os barracos iriam ao chão e boa parte da comunidade ficaria desabrigada. A realidade, no entanto, era diferente. O solo era firme, as casas se mantêm até hoje. O interesse, na verdade, era imobiliário, remover os ditos “favelados” a fim de abrir espaço para um condomínio de luxo, um hotel e tudo o mais que o dinheiro quisesse construir. Do outro lado dos anseios capitalistas, os moradores do Vidigal enfrentavam a falta de infraestrutura. Não havia asfalto, saneamento básico e até as contas de luz e água eram complicadas, “um relógio para 500 pessoas”, conta uma moradora. Além disso, a proibição de construções de alvenaria prejudicavam as condições de habitações. Diante dos problemas-mil, o senso de coletividade se aflorou na comunidade, eles começaram a organizar mutirões para construir escadas e, claro, se uniram para impedir a onda de despejos e remoções.
“Favela do Papa” estabelece o resgate histórico de um episódio quase esquecido por meio da memória e dos relatos. Os hoje idosos na frente das câmeras eram jovens no final da década de 70 e estiveram ativamente envolvidos na resistência. Mesmo durante a ditadura militar, a comunidade não se omitiu de resguardar o direito à habitação. Um líder comunitário relembra com felicidade de um protesto em que crianças estiveram no centro da ação, outro ri ao lembrar que subornou um policial para terminar de construir sua casa. A variedade de personagens e entrevistados coloca o espectador em contato com diferentes perspectivas. Alguns eram “apenas” moradores, faziam o que podiam, outros conseguiam, por meio de sua influência, chamar atenção para o problema e organizar formas de impedir as remoções. O compositor e cineasta Sérgio Ricardo, que fez a trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), era morador do Vidigal e foi um dos participantes da resistência. Marco Antonio Pereira, inclusive, faz uso do making of do longa “Bandeira de Retalhos” (2018), dirigido por Sérgio, que trata especificamente desse momento histórico do Rio de Janeiro.
Cada um ajudava como podia, até mesmo a Igreja Católica exerceu um papel fundamental na luta para pôr fim nas remoções. A Pastoral das Favelas e a atuação de d. Eugênio Sales deram apoio à comunidade e trouxeram o interesse midiático para a situação. Nesse aspecto, a montagem do filme consegue estabelecer uma dicotomia entre os relatos e os arquivos. Essa alternância é imprescindível para ilustrar o que se é contado. As palavras e as lembranças, exclusivamente, não conseguem dimensionar tudo, são subjetivas e sujeitas aos efeitos do tempo. Já as imagens complementam e confirmam o que dizem, não fica restrito ao relato. O uso de reportagens de TV e o material jornalístico funcionam com o mesmo efeito. Nesse caso, demonstram o próprio posicionamento da mídia frente às remoções e a urgência do assunto como um problema de interesse público.
A visita de João Paulo II ao morro e o claro interesse midiático por trás da presença papal acabou resguardando a comunidade do Vidigal de qualquer represália. Como alguém vai ousar acabar com a favela que foi visitada pelo Papa? “Favela do Papa” demonstra que o esforço coletivo, o apoio da Igreja e a posterior cobertura jornalística permitiram que uma comunidade resistisse. As entrevistas guiam narrativamente toda a luta para o momento de ascese, de transbordamento espiritual: a presença de João Paulo II na recém inaugurada capela. No entanto, sem o claro empenho comunitário em enfrentar as injustiças da remoção, a qual foi guiada por um motivo inventado e ocultando a verdadeira intenção, nada daquilo seria possível. A luta demonstrou que a Zona Sul também é para o pobre e, por meio do esforço, Vidigal venceu Faria Lima, venceu a especulação imobiliária e foi abençoada pelo Papa João Paulo II.