Fausto
Contra o demônio-agiota
Por João Lanari Bo
Reserva Imovision
“Fausto”, realizado por Alexander Sokurov em 2011 e inspirado no célebre “Fausto”, de Goethe, parece feito de um magma desconfortável e incompatível com o mundo contemporâneo da transparência e design publicitário: de certa forma, foi concebido como negativo da ordem visual dominante, essa que combina assepsia e imagem computadorizada. Na fita de Sokurov, estamos diante de uma tentativa de purificação da humanidade, através da absorção do demoníaco, do tartáreo – a matéria “reflete sobre sua natureza tartárea …e põe em derrisão o significado alegórico que lhe é emprestado”. Significado poético de tartáreo: pertencente ou relativo ao inferno ou ao tártaro. A citação é de Walter Benjamin, apud Haroldo de Campos, que publicou livro sobre o assunto com título cinematográfico: “Deus e o Diabo no Fausto de Goethe”. O universo faustiano, como se vê, pode desencadear uma derivação especulativa infinita, muito além dos limites do presente texto. Goethe, esse múltiplo personagem que viveu na transição do século 18 para o 19, ocupa aí lugar central: com efeito, o personagem Fausto, que flerta e vende a alma para o diabo, ocupou a mente prodigiosa do poeta e cientista alemão durante cinquenta anos, como admitiu a um interlocutor no fim da vida: “os materiais (sobre Fausto) se acumularam a tal ponto que a dificuldade é separar e rejeitar; mas pode ser uma vantagem eu não ter escrito isso até agora, quando meu conhecimento do mundo é muito mais claro”.
Sokurov não titubeou e entrou de cabeça nessa densa e movimentada tradição. Há quem diga que seu filme deve mais ao lendário Dr. Fausto dos séculos 15 e 16 – origem da tradição: astrólogo, médico, alquimista e mago que circulou no fim de festa medieval alemão – do que a uma adaptação da obra goethiana. Outros usaram o mito faustiano em produções artísticas, antes e depois de Goethe, como o dramaturgo inglês Christopher Marlowe. O fiel colaborador de Sokurov, Yuri Arabov, é mais um deles: certamente aproveitou em seu roteiro diversos traços da segunda parte do “Fausto” de Goethe, mas o filme extrapola e atualiza o mito para a potência do cinema: talvez seja nessa junção, ocultismo do Dr. Fausto e visualidade contemporânea, que se encontra a força da linguagem a mover o filme de Sokurov. Em vários momentos, assistir a “Fausto” gera um incontornável sentimento de repulsa, anestesiada pelas cores esmaecidas que ilustram a imagem – não há cores quentes para reconfortar, como o vermelho. Incontáveis leituras já foram feitas sobre a luz e o cromatismo trabalhados pelo diretor russo: sua poética visual é uma espécie de condensação da história da arte. Nessa trama trágico-romântica, o virtuosismo de Sokurov serve de anteparo para personagens que parecem a um passo do estado de putrefação, não apenas do corpo, mas da alma. Não há naturalismo nesse mundo: os corpos se movem lentamente, gestos difíceis, gases e cheiros, caminhadas improváveis em cenários de lama e cascalhos, atmosfera pesada. Excessos corporais caracterizam o personagem-demônio, Mefistófeles, que é também um agiota chamado Mauricius (fantástica interpretação do mímico Anton Adasinsky): seu corpo é grotesco, um acumulado de carne e gordura com sexo de criança, revelado num banho coletivo alucinado. Em contraponto, nosso Fausto, corpo-íntegro, é um médico-cientista, ávido por prazeres seculares e aberto a um pacto diabólico.
A janela cinematográfica escolhida por si só perturba – 1.37, a chamada janela acadêmica, usada sobretudo até os anos 1950: em Sokurov, o formato amplia a sensação claustrofóbica. Em meio a tantas referências literárias e pictóricas, cabe também a remissão ao belíssimo “Fausto”, que Murnau realizou em 1926. Na obra de Sokurov, “Fausto” fecha uma tetralogia sobre grandes déspotas do século 20, Hitler, Lênin e Hiroíto. Qual a relação entre um personagem como Fausto, atormentado pela danação que separa corpo e alma, com a essência que informa os protagonistas históricos de “Moloch”, “Tauros” e “O Sol”? Talvez, como sugeriu o crítico do Cahiers du Cinema, Cyril Béghin, o “historicismo dos filmes precedentes deve ele próprio ceder lugar à relação mais fundamental dos corpos e das substâncias”. Em “Fausto”, a impressão é que deslizamos sobre uma massa líquida e distendida, eventualmente atravessada por suspensões sonoras e visuais, que habitam o subsolo da História. Na feitura do roteiro e na produção do filme, Sokurov e Yuri Arabov alteraram situações do drama original de Goethe – e concentraram o dilema faustiano na agitação moral do personagem, em sua mistura incessante de inquietude e exaltação
“Fausto”, enfim, é também um sintoma das complexas relações entre a Alemanha e a Rússia, pontuada de violências extremas, mas também de elevadas interações culturais e filosóficas. Os dois países compartilham várias proximidades: o próprio Putin, por exemplo, viveu na Alemanha Oriental no início de sua carreira na KGB e fala alemão. Quando ganhou o Leão de Ouro de Veneza, em 2011, o diretor recebeu um telefonema do Presidente russo, e declarou, no palco: “O filme não teria vindo à luz se Putin não tivesse viabilizado o financiamento”. Sokurov explicou que Putin o convidou a sua casa de campo para discutir o projeto; em seguida, um fundo de caridade em São Petersburgo desembolsou apoio à produção.