Fairytale – Conto de Fadas
O paradoxo de Sokurov
Por João Lanari Bo
Festival de Locarno 2022
Estritamente falando, a superfície da tela cinematográfica e da tela de pintura são uma mesma coisa…a imagem cinematográfica deve ser criada segundo os cânones da pintura, porque não existem outros (Alexander Sokurov)
Só mesmo a Rússia seria capaz de produzir um cineasta disposto a uma afirmação dessas, concedida em entrevista à revista ArtForum, em 2001 – uma proposição lógica que articula dois conjuntos a princípio incongruentes, como se o cinema não fosse outra coisa, em termos visuais, do que uma imitação da pintura. O crítico Roger Bird enxerga nesse paradoxo a explicação possível da posição que Sokurov ocupa no cenário cultural russo – alguém que, simultaneamente, apresenta-se tanto como a face pública do cinema experimental, quanto como porta-voz do tradicionalismo estético. Sua caudalosa produção, desde os tempos soviéticos, é exemplar enquanto inovação formal, seja no plano ótico, seja na narrativa – e é também tributária da tradição artística desse imenso país.
“Fairytale – Sombras do Velho Mundo”, lançado fora do Brasil em 2022, é mais uma etapa desse percurso, um filme que demanda, certamente, um consumo diferenciado no fluxo audiovisual contemporâneo: dispositivos de construção da imagem únicos e ousados, a um só tempo sintonizados com a modernidade que bate diariamente às nossas portas – o chamado metaverso – e aterrados em um deserto de construções clássicas abandonadas, escombros, neblina, árvores esqueléticas, cenários das gravuras de Gustav Doré, em uma palavra, purgatório.
O que é o purgatório, senão um metaverso? Foi o Papa Bento XVI quem sugeriu que o purgatório é a experiência plena do olhar de Jesus, que assume a forma de benção ardente. Jesus, aliás, é o principal coadjuvante dessa aventura, cujos protagonistas são portadores dos maiores egos do século 20 (na falta de uma caracterização mais refinada): Stálin, Hitler, Mussolini e Churchill, não necessariamente nessa ordem. Claro, estamos em território eurocêntrico, mas convenhamos que o impacto desse quarteto na ordem mundial atravessou oceanos e continentes. Em “Fairytale – Sombras do Velho Mundo” esses espectros caminham vagarosamente, como um videogame em slow motion, cruzando entre si e entre seus duplos, soltando piadinhas e provocações, eventualmente confirmando assertivas de fundo político – e à espera, como não poderia deixar de ser, do acesso ao paraíso.
Levante-se, seu preguiçoso, murmura Stálin para Jesus, antes de sair do calabouço que compartilhavam e adentrar o espaço cinzento e riscado de carvão, cheio de ruínas e descampados, magmas de sofredores clamando pela salvação de suas almas, pela expiação dos pecados (Jesus, esperto, retruca em aramaico e não segue o soviético). Lá fora, caminhando como se estivesse mergulhado em um líquido amniótico, Hitler resmunga – Stálin cheira a ovelha. Churchill, afinal o único não-ditador do grupo, retoma e adapta uma fala famosa – Não ofereço nada além de lágrimas, suor e morte – e passa o resto do tempo tentando comunicar-se com a Rainha. Mussolini, o fanfarrão, inveja o chapéu de Hitler e vocifera: Tudo vai voltar, só preciso cruzar o Rubicão – e, para irritar Stálin, arrisca: Lenin gostava de mim. Hitler não fica atrás: Stálin, você é judeu caucasiano, um tipo raro! O comandante do Exército Vermelho não deixa passar: Você cheira a carne queimada, Hitler, cheira a seu passado. Alguém surta e exclama: Malevich, Malevich, maldito Malevich!, uma pequena pausa de reflexão pictórica, seguida de autocrítica do próprio diretor, na voz de Hitler: aqui não tem lugar para melancolia, não escutem Sokurov, olhem para a frente. E Churchill arremata: alemães e comunistas estão por toda a parte, podem ser distinguidos pelo cheiro.
Os diálogos patafísicos são a primeira camada de estranhamento de “Fairytale – Sombras do Velho Mundo”. Nesse manicômio de almas errantes, até Napoleão, objeto de admiração do Fuhrer, tem o seu momento – uma espécie de porteiro do Céu. A segunda camada seria o mix visual orquestrado por Sokurov, panos-de-fundo inspirados em clássicos (Doré, mas também o infalível Hubert Robert, o preferido do diretor) com desenhos animados de figuras celestes. E a terceira, a melhor, a sacada genial do diretor: a geração de imagens dos Stálins, Hitlers, Churchills e Mussolinis a partir de cinejornais e fotografias – recuperando assim um imaginário de gestos, sorrisos, movimentos de corpo e pequenas expressões, um inconsciente ótico soterrado em algum lugar da cultura visual do século 20.
Mas, atenção: não se trata de deepfake, tecnologia que mascara o movimento e é rejeitada categoricamente pelo cineasta. O processo inicial foi analógico: exame de centenas de horas de material de arquivo, reunião de frases que os protagonistas disseram, em particular sobre as guerras. A junção de texto e imagem foi o princípio organizador do filme. Quando Stálin olha para a câmera, o que se passava na sua mente? ou quando Hitler pensava em alguma coisa, no momento que alguém falava com ele? E assim por diante: cada um dos personagens tem um ator dizendo, nas respectivas línguas originais, essas, digamos, falas – apenas os sussurros de Jesus não estão creditados.
Eu queria que, no meu filme, aparecessem apenas os verdadeiros protagonistas; não atores, não imagens de computador, apenas os verdadeiros protagonistas, revelou o diretor. Dessa viagem às profundezas do purgatório, no melhor estilo dantesco, restou uma certeza, ainda nas palavras de Sokurov: a Segunda Guerra Mundial ainda não acabou.