Eu Também Não Gozei
Morre o homem
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2024
O primeiro longa da Mostra Aurora, “Eu Também Não Gozei”, de Ana Carolina Marinho, foi uma boa introdução à Mostra competitiva nessa 27a Edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. O documentário acompanha a trajetória de Letícia, que procura descobrir quem é o pai de seu filho Pedro, pois existem quatro homens possíveis e uma parte significativa deles se recusa a realizar o exame de DNA.
Para além dessa questão central, vemos as dúvidas e dores de Letícia durante este recorte do filme, pois ela passa a questionar inúmeras questões quanto a maternidade, a paternidade, as formas de criar seu filho etc. Em determinado momento, vemos seu descontentamento com toda a situação envolve do esses homens que mantém a recusa do teste e ela chega a verbalizar que sua frustração, como um sentimento de culpa pela situação que seu filho se encontra, com um pai vivo, mas desconhecido. Nesse caminho, parte do esforço de “Eu Também Não Gozei” passa pela demonstração dos inúmeros constrangimentos sociais, injustiças legais e descaso do Estado com situações desta natureza. Não por acaso, um dos momentos de maior impacto na plateia no Cine-Tenda, é uma conversa com duas advogadas que relatam casos semelhantes e como algumas conquistas básicas das mulheres são recentes na história da justiça brasileira. Neste caminho, foi bem direto o impacto que a obra teve na Mostra Aurora, criando uma série de debates fora da sessão sobre as questões apresentadas no filme. Esse é um dos méritos da obra, conseguir provocar uma reação para além de sua própria sessão.
Em contrapartida, nem tudo na construção do documentário funciona. Tem alguns blocos onde acompanhamos algumas performances de Letícia e seu trabalho como atriz, em diversos espetáculos e ensaios, mas alguns não possuem uma efetividade de sua participação na montagem. Isso porque, se em algumas cenas vemos provocações quanto à temática, performances que expõem alguns diálogos que ela teve com alguns dos homens e questões que não foram abordadas diretamente no desenvolvimento do documentário, mas alguns planos não possuem uma ampla justificativa e acabam ficando soltos na obra, especialmente alguns ensaios. É compreensível que a intenção da diretora era nos aproximar de seu cotidiano, para que pudéssemos contemplar sua próprias formas de expressão, mas esses recortes acabam criando uma certa disritmia na representação proposta inicialmente. Acaba funcionando como uma espécie de interrupção no fluxo e pode soar mais burocrático que gostaria.
Ainda assim, nesse contexto de nos aproximar de Letícia, o filme consegue construir algumas cenas realmente belas na interação com o filho, desde a protagonista brincando com Pedro até um belíssimo plano dela cantando “Mas o meu nome
Ninguém vai jogar na lama
Diz o dito popular
Morre o homem, fica a fama
Eu quero morrer numa batucada de bamba
Na cadência bonita do samba”. Esse tipo de demonstração da intimidade do cotidiano dos protagonistas, faz com que o longa ganhe uma nova dimensão com sua progressão: que a particularidade de Letícia possa se ampliar como representação de uma questão realmente estrutural da sociedade brasileira. É onde a obra consegue seus maiores méritos, e também algumas instabilidades, pois sem saber como realizar a transição entre o cotidiano e suas formas de tentar resolver o impasse com os dois homens, “Eu Também Não Gozei” tenta se equilibrar em um jogo de contrastes. Essa proposta funciona até onde a montagem consegue transacionar isso de forma mais consciente, mas não é uma constante e muitas vezes os recortes soam arbitrários, sem saber exatamente como essa carpintaria de duas perspectivas de um mesmo mundo podem se complementar.
Mesmo com suas inconstâncias, “Eu Também Não Gozei” foi uma boa estreia da Mostra Aurora, com uma característica particular no retrato de sua personagem, quase como um diário, que a partir dessa particularidade, é capaz de expandir a interpretação para uma realidade social brasileira que mostra sua verdadeira face. Letícia é admirável, corajosa e possui uma força para enfrentar os inomináveis que realmente conquistou o público no Cine-Tenda.