Eu Me Importo
Vale tudo pelo "sonho americano"
Por Fabricio Duque
Netflix
A essência do cinema é contar histórias. Muitas causam incômodos por aludir à realidade. Consequência mais que permitida, visto que nós espectadores estamos protegidos do lado contrário ao da ficção. E tantas se vendem como um gênero e se comportam como outro. “Eu Me Importo”, que estreou ontem no catálogo da Netflix, é um desses exemplos. Uma comédia de humor negro, que na verdade é um filme de terror psicológico e comportamental. Uma obra que mitiga toda e qualquer esperança de um povo em seu sistema legislativo. Um longa-metragem, que de tão sinestésico (sem estimular nossa piscada, por exemplo, para que não percamos nada), causa nosso sofrimento, porque percebemos que somos impotentes às letras miúdas das regulamentações sobre civis, nós mesmos. De que o mundo de hoje mudou tanto que não há mais salvação, apenas lícitos enganadores.
Essa é a mensagem de “Eu Me Importo”, terceiro filme do realizador J Blakeson (de “A Quinta Onda” e “O Desaparecimento de Alice Creed”). Uma trevas sem futuro. Sob a tutela-permissão-concessão da corte de um Estado, manipulada por experts tão perspicazes que chegam ao nível dos psicopatas mais cognitivos e disfuncionais. Já adiantamos que neste filme não há para onde fugir, apenas aceitar o roubo. E é exatamente por isso que esta obra objetiva sua maestria. A de dominar completamente o público por uma afiada e gananciosa narrativa em um Thriller tensionado, bem à moda da atmosfera eletrizante do seriado “Breaking Bad”. O terror mencionado anteriormente é pelo simples fato de que todo esse abuso de vulneráveis ser antiético, impetuoso, imoral, desumano, cruel, sádico, implacável, “determinado”, criminoso, sem mocinhos “justiceiros”, sem misericórdias, sem redenções e de hipocrisia exposta, não se importando mais com máscaras e dissimulações.
Todos ali estão à deriva buscando a “felicidade”, a “riqueza”, a “fama” e o “poder” do “sonho americano”, que para o vencer não se pode ser “bonzinho” e esperar. Tudo porque existem apenas dois tipos de pessoas no mundo: “os que pegam de pessoas boas para aproveitar” e “os que perdem as oportunidades”; “presas e predadores”; “leões e cordeiros”. “Eu Me Importo” aborda uma “brecha” do sistema norteamericano: permitir que idosos (vítimas “clientes” que se tornam prisioneiras “hóspedes” em cárcere privado) possam ser considerados inaptos à sociedade apenas com um laudo médico, a lábia de uma “cuidadora profissional de velhinhos necessitados” (uma “bruxa” dos tempos modernos) e uma rede (esquema de “galinhas de ouro”) estruturada de charlatões, os “apoiadores da causa”. O filme é um retrato descortinado de uma humanidade que para viver na ganância aplica golpes sem culpas existenciais. São ladrões legalizados.
Assim como em “Dogville”, de Lars von Trier, nós torcemos pela queda da vilã (ainda que a outra opção não seja tão bem lá essas coisas). “Eu Me Importo” nos coloca entre facas, cobras e “tubarões”. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. De um lado, uma “corajosa lutadora”, representando o “empoderamento” feminino. Do outro, a máfia russa. Mas qual o motivo de se torcer por alguém? Pois é, o filme articula o artifício sentimental. E nos afeiçoamos, mesmo sabendo de que também há (talvez) mais ilicitudes. Esses sentimentos conflitantes gerados é o que faz deste longa-metragem especial e único, alimentando “duelos” entre os protagonistas, interpretados pelos atores Rosamund Pike (que muito provavelmente trouxe elementos de “Garota Exemplar”, de David Fincher; e Peter Dinklage, de “Game of Thrones”).
“Eu Me Importo” mantém até o final a mesma sensação de impunidade do fim da novela brasileira “Vale Tudo”, e, ainda que um acontecimento passional mude tudo, a falta de moral e ética persiste, reverberando em mentes que acreditam que o “jeitinho” de roubar é o caminho mais rápido à realização pessoal-profissional. Aqui não se quer criticar o sistema e seu modo errôneo-perverso de agir. Não. O que se deseja é pavimentar o “sonho americano” com a máxima de que “tudo é possível”. E que os “fins justificam os meios”. Sim. Depois de tudo. O que incomoda não é o filme. Pelo contrário. “Eu Me Importo” é a “cereja do bolo”, independentemente de facilitar ora ou outra no roteiro para conseguir desenvolver sua trama. O que causa desânimo é descobrir que não há mais salvação no mundo moderno. De que essa “Matrix” acordou há tempos. E que a única alternativa é a vingança. Estado, pare de se importar por favor!