Eu, Empresa
A uberização da privatização
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2021
“Eu, empresa” de Leon Sampaio e Marcus Curvelo, encerra a Mostra Aurora com uma assinatura, no mínimo, inusitada. Acredito que poucas pessoas estavam preparadas para assistir “ensaio de Arthur Fleck terceyro mundista tentando viver o sonho do capitalismo ‘globalizado’ pelas redes sociais”. O barato é curioso. O espectador assiste quase uma hora e meia de um trabalhador, Marcus, que presta serviço para uma empresa norte-americana e decide viver o sonho do empreendedorismo, fracassando e tentando compreender a origem de seus consecutivos fracassos.
Gira entre a comédia e o drama, mas possui personalidade em desenhar essa narrativa através de registros do cotidiano, que não forçam um falso documentário, nem compreendem tal estética como uma breve transgressão da construção corriqueira para chamar atenção de si. Em verdade, é difícil imaginar a obra de maneira distinta. A obra cria uma relação ambígua com esse liberalismo midiático, creditando ao mesmo, todas as inseguranças de seu protagonista. O humor atravessa a narrativa de maneira absolutamente escrachada, não busca intermédios. Essa escolha faz com que o filme torne-se uma faca de dois gumes na direção que faz sua crítica direta ao modelo das redes sociais. Pois de um lado reconhece a possibilidade de se viver a partir do meio, contanto que faça o jogo necessário. Mas Marcus é um gênio, ele quebra o sistema. Nosso herói reproduzido em pixels, projeta seus fracassos e inseguranças de maneira desinibida, canta Shawn Mendes na praia, acredita ser fracassado demais para ser fracassado.
Diferentemente de outros projetos, “Eu, empresa” trabalha com uma espécie de vulgarização dessa mise-en-scène como um escopo da própria estrutura das redes sociais, sem impor que essa linguagem se torna a própria decadência, como uma autocrítica burguesa. Aqui, o negócio funciona a partir do inverso, o registro se torna a viabilidade de acompanharmos nosso protagonista medroso. A articulação é dada a partir dos diferentes surtos de nosso protagonista, a câmera o acompanha em suas pataquadas de fracasso. Contudo, há uma dose de drama que funciona de maneira uníssona ao humor, que faz o barato todo ter liga. Caso contrário, até a crítica feita ao sistema capitalista e imperialista, estaria fadada ao humor de maneira fajuta.
O título do longa já conscientiza o espectador do processo de empreendedorismo, onde há a perda de personalidade e humanidade para dar lugar ao projeto neoliberal, onde seu corpo e imagem está a venda sem nenhum tipo de burocracia, para gerar lucro às empresas estrangeiras. Entre alguns serviços precários e tristezas retumbantes, Marcus persegue o caminho do YouTube e o projeto ganha um tom quase pedagógico da coisa, ironizando tudo que a objetiva enquadra. As coisas são escrachadas com ironia impar, o trecho de tela verde, lisérgica, dá um barato quase fetichista de um recorte da ira de Marcus com os serviços privados. Ele “corre” e brada ao mundo que irá até New “Fucking” York, atazanar a vida da empresa que leva nome de águia.
Em “Eu, empresa” há o escárnio do mundo contemporâneo que passou a curvar-se para um processo de “coachzação”: você deve ter o mindset certo, a postura correta, pensar positivo, ser o próprio chefe, ousado e ter personalidade. O personagem embarca no balaio sem um rumo concreto além das cifras e escancara alguns pontos basilares da falibilidade do meandro neoliberal e “meritocrático”.
As cenas mais funcionais do projeto se concentram nessa relação de um drama com a comédia debochada. Pois essa proposição de um registro funciona a partir de uma espécie de alienação do protagonista ao mundo a sua volta. A longa exposição da falácia de construção de negócio a partir de sua individualidade passa a ser o fracasso constante que negligencia Marcus e transforma o sucesso em fracasso e vice-versa.
“Eu, empresa” é um dos filmes mais marcantes da Aurora do presente ano, pois não cede a maneirismos constantes para unir-se ao balaio, reestrutura a própria forma para expor uma autocrítica repleta de inocuidade, que encontra o platô entre os jogos de crueldade da indústria e o “autoral” que se torna registro.