Curta Paranagua 2024

Estranho Caminho

Uma viagem entre realidades suspensas e seus efeitos colaterais

Por Fabricio Duque

Festival do Rio 2023

Estranho Caminho

Há filmes que o espectador precisa parar de se importar com os preciosismos da narrativa ficcional mais convencional e se permitir mergulhar no vazio desconhecido de uma experiência metafísica, quase psicodélica, de sonho acordado, dentro de uma realidade paralela de memórias alteradas, em que tudo é possível e imaginado ao mesmo tempo. Isso pode ser o preâmbulo de “Estranho Caminho”, do realizador cearense Guto Parente (leia aqui o Especial que o Vertentes do Cinema fez sobre o diretor), que neste filme continua com seu ensaio narrativo à forma mais clássica do cinema português, tendo Manoel de Oliveira como base, e complementado logicamente por muitos elementos presentes nas obras da Alumbramento Filmes, um movimento cinematográfico independente que formou suas predileções técnicas e artísticas. Exibido no Festival de Tribeca de 2023 e depois no Festival do Rio deste ano, o longa-metragem também é um projeto pessoal de Guto, que perdeu recentemente seu pai.

“Estranho Caminho” ambienta-se durante o período da quarentena pandêmica do COVID, mas o cenário é apenas o pano de fundo para a construção de uma mise-en-scène existencial de crônicas de situações adversas, em que o acaso redefine a rota dos acontecimentos, das programações e de reaprender a se conectar. Esses novos caminhos flertam com o estranho. De sonhos dentro de sonhos, à moda de um David Lynch mais abrasileirado e aportuguesado. É como se o Universo invertesse a ordem das coisas para assim buscar alinhamento a fim de realocar e resolver tempos projetados ao futuro com a evocação de um querer perdido um passado diferente. É, nunca é fácil tentar traduzir os filmes de Guto Parente e isso é definitivamente uma maestria. Ao criar possibilidades, nós expandimos camadas que encontram o orgânico, o popular, o caseiro, o coloquial e a sensação de vida acontecendo, e esses pontos confluem pela preciso e irretocável rigor estético empregado no filme, especialmente pela granulação à 35mm da imagem (que ganha no externo uma saturação constraste por causa do sol) e pelo formato da tela quadrada, que remete a de uma fotografia. E que pode gerar no espectador a referência ao filme “A Nuvem Rosa”, de Iuli Gerbase, talvez pelas conversas virtuais com a namorada distante. 

Ainda que este longa-metragem não queira ser mais uma obra sobre pandemia, é impossível não recorrer a alguns dos sintomas e pânicos já consolidados na sociedade em que vivemos, como por exemplo, o espirro de alguém em um avião fechado. E/ou as notícias sobre o aumento dos casos (e mortes) acontecendo na televisão. Há um tom de medo, de terror, de pavor, de se distanciar do outro. E da ideia de fim de mundo, de perda de futuro e perspectiva. Aqui, “Estranho Caminho” também traz a metalinguagem do protagonista, um cineasta, que vem apresentar seu filme em um festival e a pandemia causa um caos desenfreado em sua vida, recriando um tempo diferenciado, de sensação etérea (de road movie sonambular) e de existência espectral. 

“Estranho Caminho” é também sobre o processo de amadurecimento de um cineasta, que é hospedado por um ser humano enquanto indivíduo social, envolto nas vivências do mundo-meio a seu redor. Nossa personagem (pelo ator Lucas Limeira) precisa aceitar o novo tempo (o descaso e a hostilidades de todos que “não dão a mínima”, o celular furtado, por exemplo) e encontrar o equilíbrio entre atitude (das revoltas sensíveis, características da Geração Z) e empatia (“Aspirações todos têm, até os mais ignorantes”), especialmente no reencontro com seu pai, em que idiossincrasias, particularidades, TOCs e neuroses são postas à mesa, como pegar hashi para pegar o cigarro, e/ou as descontaminações caseiras. “Não tem história, só viagem, só coisa da minha cabeça”, argumenta quando alguém pergunta.

Ao longo de seu percurso, o filme ganha um tom a mais de paranoia-despersonalização (principalmente com uso do close ultra zoom), que nos conduz por atravessamentos e fusões da imagem em uma grande aventura surrealista na Praia de Iracema, entre neon da cidade (o sax da rua e o noir de cinema direto mais popular, integrado à ambiência), novas e variáveis dinâmicas da vida do pai que vê o filho como “invasor” que o atrapalha e o desconcerta, e música de Uirá dos Reis. Sim, “Estranho Caminho” acontecer Guto precisou simular uma suspensão do tempo, que o permitisse se afastar da própria realidade, mas com sinergia e sinestesia, entre a perda da noção do que é ou não real, do que é um efeito colateral ou não, um sintoma, uma viagem. Tudo aqui é sobre e para seu pai, Geraldo, e a “todos os nossos mortos”, visto que não deve ser fácil expor tais sentimentos, que gerou inclusive lágrimas no debate-conversa pós filme no último Festival do Rio. 

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta