Erosão
Entre quatro mergulhos
Por Fabricio Duque
Los Angeles Brazilian Film Festival 2025
Um ser humano existe primeiramente como um paradoxo cognitivo. Cada ação corpórea representa um movimento e gera uma reação objetiva, pragmática e irracionalmente necessária. O andar, por exemplo, significa uma consequência do seu deslocamento. Mas o dançar é uma escolha subjetiva, um querer individual, mas projetado ao outro. Sim, este ser acontece por um mistério, muito por preferir a padronização de condição mais confortável. Talvez isso aconteça pela união cósmica de energias, emoções e sinapses de um invisível etéreo que nunca compreenderemos em vida. Toda essa coletividade pode ser precisamente traduzida pelo cinema, em que um grupo de pessoas se junta para alimentar suas individualidades. Assim, como a complexidade plural dos humanos, a sétima arte também criou seus padrões “convidativos”.
Sim, podemos dizer que tudo o que acontece no cinema é um espelho ficcional do que nós somos hoje e do que nós queremos ser. Mas sempre há exceções. Como um tipo-forma que se contrapõe com o do agora em que vivemos, que se apresenta pela personificação da metafísica, que performa o conceito pela estética visual, esta que, por sua vez, busca desconstruir o próprio olhar e se impor, sem ativismo, ao resgate de um imaginário perdido, de um silêncio substituído, de uma liberdade à melancolia. Esse grupo de obras quer pedir socorro para assim salvar nossa humanidade de nós mesmos.
Um exemplo cirúrgico dessa lista é o novo curta-metragem de Regina Miranda, “Erosão”. Que já em seu título nos traz a evocação de uma memória temporal, de uma afetividade empática que se transmutou em um tóxico egoísmo. Antes, nós pensávamos com sentido, característica mais essencial do ser humano. E experimentávamos o próprio silêncio como guia, libertação, catarse e consequentemente sabíamos o que fazer. Agora não. Nós nos tornamos robôs programados a cumprir missões sem profundidade, como “ter que postar a foto de um prato comentado de um restaurante que virou trending no Tik Tok”.
E é assim, numa contramão “Kamikaze”, que Regina Miranda traz “Erosão” à vida, por um movimento “arriscado” de nos descolonizar de nossas contemporâneas e futeis vontades sociais. Aqui neste filme o foco é perder o foco. É desmistificar verdades. É entrar em contato com nós mesmos como ancestrais de um mundo transcendental invisível. É mergulhar em uma simbiose metafísica, especialmente pelo formato de tela Cinemascope e pela fotografia minimalista (com um que de olho de peixe e/ou de se olhar por um olho mágico) de uma luz nostálgica (numa percepção de atravessar a intimidade mais obscura, que representa a essência mais vital de nossos interiores confusos e bagunçados). É um cinema de tempo. De explorar os excessos. De estender a própria existência. De dar ritmo ao nada. Sim, tudo aqui é uma revolução ao tudo. A toda essa quantidade de obrigações que “inventaram para a gente”.
O release oficial diz que “Erosão” é sobre três mulheres, desenhadas pelas atrizes Patricia Niedermeier, Adriana Bonfatti e Aline Deluna Mas não. São quatro. A bailarina (diretora no momento) também precisa ser incluída. E não também. Cada uma empresta seus corpos e interpretações viscerais para expor o estrutural: angústias, vulnerabilidades e resquícios esperançosos da não desistência. Não é um filme feminista, tampouco feminino. É um estudo de caso, uma terapia cognitiva, uma análise do que está escondido. As narrações direcionam a narrativa, mas é na espera da próxima ação que tudo acontece. Que entendemos que a “cura” está na dosagem específica de nossos limites ao movimento, de que precisamos redefinir permissões a nossas ausências, as nossas lembranças, aos nossos “pássaros selvagens”, aos nossos “escombros”, aos nossos mares, aos nossos lugares desaparecidos, as nossas ilusões. E de que nossos corpos, receptáculos humanos e performáticos, não são nossos e sim emprestados, e “legalmente” controlados pela sociedade. É, não é nem um pouco simples ser um humano.
Sim, também não é tão fácil assim definir “Erosão”. Há camadas e camadas. Há todo um conceito psicanalítico pela presença visual da projeção do vídeo arte, que atravessa a imagem, que funde instantes, que desconecta a realidade com a desestrutura da montagem temporal, com que de “Matrix” bem mais etéreo. O que é real no olhar? O que é a projeção do olhar? O que a gente quer ver? O que a gente manipula no nosso olhar ao receber tudo isso?
Como disse, “Erosão” é um ensaio orgânico e estético sobre a existência de presenças personificadas em desconstrução aos movimentos automatizados. No dicionário a palavra erosão significa um processo de desgaste lento, mas aqui esse processo vem do precedente da decisão tomada. Sim, este curta quer a inversão: o nada neste caso é o que causa a revolução, o caos em busca do tudo, este não mais influenciado e ditado pelos outros, mas complemento liberto e reconstruído com o que realmente importa. “Erosão” é uma obra de reconexão. De andar de olhos fechados. De “lavar roupa” com nosso mar interior e com nosso inferno particular (os nossos desmoronamentos – contras e/ou à favor). Um filme que não há verdade e que não está “lá fora”. Nós somos aliens de nós mesmos. O curta-metragem, que roda neste momento o mundo em festivais de cinema, é produzido pela Casa Cine Brasil, capitaneado por Alexei Waichenberg.


