Era o Hotel Cambridge
São Paulo Cidade Anônima
Por Vitor Velloso
Diante do número de projetos “políticos” produzidos no Brasil, ao longo dos últimos anos, “Era o Hotel Cambridge” se destaca não apenas por sua não necessidade de autoafirmação autoral, como “Bacurau”, mas por sua verve orgânica diante da realidade do mundo. Seja ela de cunho ficcional ou documental, pois ainda que haja uma encenação aqui envolvida, esta se encontra a serviço de uma proposta de retrato do Real através de um escopo espaço temporal que se tem mais liberdade fílmica.
A escolha de Eliane Caffé, pode vir a ser criticada por um grupo específico que ataca diretamente determinados hibridismos, acusando-os de estar “em cima do muro” diante de uma discussão tão perpetuada pela unilateralidade do poder do Estado. Porém, o excesso de qualquer ambientação diversa aqui, geraria uma questionabilidade acerca de toda sua proposição, pois a lente poderia vir a expor dualidades nada bem vindas para a obra. Não à toa, a dicotomia e a bipolarização das forças de atuação aqui não estão em pauta, não é um longa que grita resistência em conformidade com a situação contemporânea do país. Não é um filme que tenta reconciliar cinematografias, muito menos conscientizar através de interesses econômicos, a preocupação central está ligada diretamente aos seres humanos que compõem a imensa torre de babel localizada em São Paulo.
Agregando múltiplas histórias e culturas, o Estado interviu em favor da propriedade privada, como sempre, de forma truculenta, partindo para a agressão contra uma população que defendia seu direito de moradia. “Era o Hotel Cambridge” é lúdico enquanto pode e duro quando deve, dá ao espectador o tom de esperança que o país tanto urge em alcançar, seja através da arte, da comunicação permitida pela tecnologia etc. Mas é duro ao construir sua narrativa, costurando com os retratos documentais da obra, além de conceber a infelicidade eterna de estar na situação do país subdesenvolvido.
Ao escutarmos dois palestinos cantando acerca da saudade que sentem de sua terra, somado ao discurso do mais velho, sobre estar feliz sobre sua chegada ao Brasil, pois ele via o momento como o fim de sua “caminhada de Sísifo”, sentimos o aperto no coração de reconhecer os verdadeiros ciclos de opressão instaurados no país, a previsibilidade dos acontecimento é fruto de um perpétuo clichê de discurso dos que são colocados no poder pelo próprio povo. O subdesenvolvimento latino-americano é aquela caminhada de Sísifo, apenas com uma geografia diferente.
Não se pode conceber determinadas aberturas que a ficcionalização nos abre, através única e exclusivamente do documentário. Os atores estão ali para aproximar uma parte do espectador com os dramas ali envolvidos, não apenas com a carga histórico-emocional que é imposta na tela de cinema. Essa tentativa de humanização das correlações, em encenações brevemente pragmáticas, pode vir a ser falha em alguns momentos, mas expõe as tentativas de automatizar o didatismo de questões estruturais, logo, ainda que comprometa o ritmo, gera movimentos estéticos inteiros como a concepção artística gerada em seu projeto na internet. Concebendo uma cena com blackout e cortes que remontam uma geograficidade e culturalidade próprias de cada um dos setores daquele espaço. E o faz, sem o eterno pretensiosismo de recorrer aos aplausos calorosos da política derrotista, mas sim porque reconhece ali uma maneira de intercalar o que é tangível e a própria criação. Permitindo que tênue linha se dissipe em movimento propriamente social.
Acho interessante pensarmos a partir de uma questão isolada a frase “Isso é História”. Ao aplicarmos a sentença ao momento político e social em que uma obra está inserida, é possível reconhecer ali sua projeção temporal. Mais que um fenômeno situacional, “Era o Hotel Cambridge” torna-se um retrato vívido de uma realidade jamais esquecida, tão próxima da gente que a maioria do cinema desconhece. Reverenciando, como sempre, as inclinações de formalismo estrangeiro, que busca sempre estruturar seu projeto através de um gatilho fácil e de uma empatia lógica, mas não coloca o corpo e a alma em uma possibilidade de discussão que irá reverberar junto à sociedade. É anacrônico e sempre esteve no mapa. Mas quando for, não há paz.
O submundo político deste país segue buscando agregar suas estruturas sociais e de relações pessoais e culturais, mas não é capaz de se manter intacto ao longo de tantos duros golpes, não sem apoio.