Entre Dois Crepúsculos
A desumanização das relações
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de SP 2021
As relações de classe e a exploração do trabalhador compõem parte da crise dos patrões em “Entre Dois Crepúsculos”. O filme de Selman Nacar cria um retrato de como a burguesia tenta destruir a consciência da família de um trabalhador que morreu em serviço, procurando corromper o grupo de pessoas com seu dinheiro. Aqui, parte da relação dos poderes se inverte, já que o desespero da classe dominante é a família do trabalhador não se corromper diante do montante financeiro. A exposição da peçonha começa nos julgamentos imediatos: “ele estava bêbado”, “esse povo é ganancioso” etc, conforme a cortina cai, o longa investe sua construção na relação dramática do protagonista, Kadir (Mücahit Koçak), para que o espectador compreenda seus dilemas entre ajudar sua família a livrar a barra e permanecer com seu amor, Esma (Burcu Gölgedar), sendo punido em nome dos seus.
Essa tentativa de humanizar os dilemas de um dos patrões acaba sendo uma das armadilhas para uma trama que apesar de expôr a vileza das relações de trabalho e a corrupção de todo o sistema público em favor do privado, não consegue se desenvolver em sua totalidade e encerra toda sua representações nas dores de Kadir. Ou seja, torna-se uma denúncia que se esvazia com a progressão, sendo mais um drama particular que necessariamente uma digressão na representação da burguesia. Funciona bem durante a maior parte do tempo, demonstrando a urgência com que os patrões precisam resolver um problema e como existe um grave processo de desumanização de cada um dos funcionários frente ao interesse dos ricos. Mas quanto mais o espectador mergulha no mundo de Kadir, mais as coisas se deslocam ao ponto de não conseguir ir até a decadência da classe, apenas à desmoralização e retirada de dignidade de um homem pertencente a ela. Nesse ponto sem retorno que “Entre Dois Crepúsculos” se enfia, a narrativa chega a criar longas pausas para vermos ele oscilando entre sua vida de detentor dos meios de produção, a vida amorosa e a descoberta da vileza de sua família diante de uma situação tão brutal.
O que dá título à obra é justamente essa oposição de dois universos separados pela moral do personagem, dissolvida na justaposição de seus interesses e de um “humanismo” de decência. Está claro que a moral impera nesse desenvolvimento que até é dinâmico, mas nunca é honesto em sua totalidade. Diferentemente de boa parte dos longas assistidos até o momento, o ritmo não pesa aqui, a encenação consegue fazer seus personagens manterem esse pêndulo entre o desespero e a raiva. Mas o tempo de tela é díspar, Kadir é o centro dessa obra que aponta o dedo mas não dá voz, mira a objetiva em uma relação que já vimos à exaustão no cinema, ou melhor, em uma perspectiva comum. O que ocorre nesse movimento, é que aquilo que inicialmente parecia uma denúncia construída para expôr a decadência, como em diversos filmes do Cinema Novo e adaptações de Nelson Rodrigues, por exemplo, acaba se encerrando em um universo moral isolado, onde apenas a ética é alvo.
“Entre Dois Crepúsculos” perde muita força com o passar do tempo, o suficiente para fragilizar a boa primeira metade e comprometer a segunda. Por mais que a direção se mantenha firme na composição de uma encenação que não se esconde diante do obscuro da sociedade, as instituições são fragilizadas e desmoralizadas, mas nunca ao ponto de derrubar por completo esse jogo de representações falsas e mentiras absurdas. A desumanização é exposta, mas a obra não se empenha em fazer o mesmo dos dois lados da moeda e a coisa acaba findando em um vazio moral existencialista que promete muito e pouco faz.