Ensaios Sobre Yves
Uma ode a nosso azul invisível e além
Por Fabricio Duque
Mostra Cavideo 26 anos
Azul. No popular, a cor azul representa um status de felicidade e de equilíbrio, tranquilidade, serenidade, harmonia e espiritualidade. É também a cor da frieza e da monotonia. Entre os estudos acadêmicos, os efeitos na saúde podem gerar a diminuição da circulação sanguínea, a redução da temperatura corporal e a baixa da pressão arterial. É uma cor dúbia e até mesmo contraditória, por ser ideal em ambientes formais, mas estimular ao mesmo tempo a criatividade. Contudo, altas doses de azul podem gerar síndromes de pânico, desnorteamento e depressão. No Cinema, o azul foi instrumento de traduções sensoriais, servindo de metafísica para o cineasta Derek Jarman mostrar em tela o que via após as consequências de sua imunodeficiência; foi a cor “mais forte” pelas lentes de Abdellatif Kechiche; foi a cor referente para que o realizador Jean-Luc Godard representasse a liberdade na pintura do rosto da personagem de Jean-Paul Belmondo em “Pierrot Le Fou – O Demônio das Onze Horas”; e foi até mesmo a cor indicada para humanizar sentimentos em “Divertida Mente”, a animação da Pixar. Se olharmos ao cotidiano nosso de cada dia, nós estamos rodeados de graduações azuladas. O céu é azul. O mar é azul. O infinito também deve ser azul, só pode! Todo esse preâmbulo serve para dar mais peso a essa cor escolhida pelo artista plástico francês Yves Klein e que agora se torna tema e narrativa da mais recente obra cinematográfica, “Ensaios sobre Yves”, dirigida por Patricia Niedermeier.
Integrante da Mostra Cavideo 26 anos, “Ensaios sobre Yves” é muito mais que uma simples ode ao tom específico de azul de Yves Klein, que ele patenteou como International Klein Blue (IKB, =PB29, =CI 77007, coordenadas aos leitores mais exigentes). Sim. A realizadora carioca não se contentou apenas em criar experimentações, alquimias e performances artísticas, mas sim adentrar literalmente à obra. Vivenciar a plenitude das sensações. Tudo aqui é um convite à imersão. Patricia quer ser a própria obra. Quer dar movimento, ação, nova perspectiva subjetiva. Quer se prender. Quer ser possuída. Quer personificar o azul. Quer se perder nas emoções, reações, limites, dores e felicidades desmedidas. Quer ser a própria vida e a própria morte. Os espectadores dessa forma conseguem encontrar a desconstrução, base para a reconstrução visual. Uma “comunicação imediata com o azul autônomo, livre, sem justificativa, luminoso”. E “sem ele toda poesia seria incomunicável”. O caminho narrativo escolhido aqui foi a de escolher capítulos fragmentados, entre vida, obra, início, meio e fim de Yves, trazido como amigo e influenciador, por ser tratado na primeira pessoa. De partes de um todo, é buscado aqui a “vibração, essência e fim de toda a criação” ao mesmo tempo. Nós sentimos” a alma”. A monocromia nos permite abrir mão por um momento de possibilidades. Vemos então apenas uma opção e dessa forma cada um ganha a capacidade de se refazer. De regurgitar “sensações pictóricas”.
“Ensaios sobre Yves” conduz-se por trechos ditos ou escritos no passado pelo artista em questão e quase de forma inevitável, ao ensaiar a metafísica, verbo este de conotação não definitiva, se engendra manifestos monocromáticos, de cunho existencial, psicológico, neurotransmissor, antropológico, comportamental, metafórico e altamente pessoal. Há teorias em nosso Mundo que afirmam que nada do que vemos é real. É tudo uma projeção mental. E que só as pessoas cegas podem realmente enxergar. Não se sabe se foi proposital no processo daqui, mas Patricia fez isso: nos cegou para ressignificar nossas visões. Nos capítulos, em títulos afetivos, acessamos o básico e o complexo. Do equilíbrio inabalável do Judô até as mais radicais consequências vulneráveis. Da crença, arrogante e genuína, no momento da criação, até o infarto aos 34 anos por não conseguir lidar com as críticas a seu trabalho. Yves nesta obra é humano, enigmático, gênio, arte e neodadaísta. “Ensaios sobre Yves” ainda não está satisfeito. Quer potencializar ainda mais nossa imersão, especialmente quando insere uma aura de tom oitentista de nostálgico futurismo thriller. E ou quando no confronta com outras cores: a da capa laranja do livro, por exemplo, que sim, lembra e muito uma das cenas de “Pierrot Le Fou”. Nós somos transformados em observadores passivos na barca que navega entre as estações do inferno e do paraíso; a lucidez e a total entrega-catarse esquizofrênica.
Na verdade, “Ensaios sobre Yves” é uma concepção. É um pincel vivo. Uma autoralidade tão livre que não busca a aceitação do público, até porque dizem por aí que nenhuma pessoa sabe realmente o que quer até que alguém apresente novidades a elas, grupo que pode ser traduzido como uma massa social, em briga constante entre o micro e o macro, entre o individual e o coletivo. Todos os ensaios-performances daqui querem a didática de apresentar Yves e querem o extracampo do sensorial transcendental. Querem tudo. De sair da própria vida. De experimentar o adormecido. Patricia segue sua linha característica (a mesma de “Salto no Vazio”): a de narrar subjetivamente suas vivências, percepções, imaginações e ideias. Entre Nice, primeiros encontros, referências, imagens de arquivos, reflexos, transmutações visuais, interposições angulares, atravessamentos, encontra-se um portal azulado, um “quadro azul, uma porta aberta”, que nos diz que a maestria de uma obra está na “sinfonia de um nota só” (“encontrar a nota que todos os outros buscavam”), como se “a vida fosse um movimento” em acordes ininterruptos. Quando menciono a complexidade, é devido ao desejo que o filme tem de transformar em imagens a “zona de insensibilidade imateral”. Há algo cósmico, celestial, extranatural, hiperfísico, mágico, pretematural e corpóreo em buscar toda essa arte invisível. Toda essa alquimia abstrata. Todos esses espaços eternos. Em tempos de experiências hype de tom rosa, vestir o azul é viajar para o mais escondido de nossos azuis. É respeitar que seres, essencialmente humanos, os permitindo acessar os elementos de suas liberdades. De saltar no vazio. De zerar padrões. “Ensaios sobre Yves” faz com que o azul nosso de cada um possa ser a cor mais forte, a imagem filosófica de suas ausências.