Ensaio Sobre o Fracasso
Cinema, Ode e o Ensaio Tupiniquim
Por Vitor Velloso
Crítico convidado pela Mostra de Tiradentes 2020
Cristiano Burlan é um diretor que produz em uma quantidade invejável. Por isso, é possível que, pelo menos uma vez ao ano, em algum festival brasileiro, os críticos esbarrem com uma (ou mais) obra deste cineasta. Desta vez, na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, foi a vez de “Ensaio Sobre o Fracasso” ser exibido fora da competição, algo que pode ser considerada uma decisão injusta. O filme é um recorte híbrido que reúne filmagens de ficção e de materiais de arquivo que vão de Yasujiro Ozu a Jairo Ferreira, passando pelo próprio Burlan. Esse ensaio se torna um exercício de amor ao cinema, ao ponto que costura com a marginalidade típica de seus autores (em especial Jairo) a necessidade de se discutir o que faz da produção brasileira essa reatividade generalizada a um espectro de cinefilia europeizada.
Ainda que haja algum grau de dicotomia no discurso, já que se aplica aqui a brasilidade da verve de Jairo, a proposição da voz em off que assume a língua francesa ou inglesa por vezes, não chega a ser contraditório se o eixo do debate é a manutenção deste fracasso enquanto um sonho que jamais chega por uma questão de condição do cinema nacional. A vertente que transita entre a estética e o social reconhece em seu protagonista uma falência generalizada de uma cultura cinematográfica que cresceu a partir dessa vontade de expressão. Vontade essa tão sufocada pelos fantasmas do passado, o que pode vir a ser o caso de Burlan (para alguns críticos contemporâneos), ou mesmo de um vislumbre impossível de comercialização dessas obras.
Essa temática dominou uma discussão formal pós-sessão de “Ensaio Sobre o Fracasso”, não apenas pelas decisões que o diretor assumiu durante o processo (exemplo: filmar em tom intimista, quase amador, boa parte de suas tomadas) como a própria estrutura que se apresenta. O longa-metragem se assume quase uma terapia, não à toa, os créditos se apresentam como “ensaio sobre um filme”, pois compreende em sua linguagem e necessidade de se expressar uma urgência de reconciliar uma historicidade tanto da cultura nacional quanto da “carreira” (no caso de Burlan, de fato se configura uma carreira) de um cinéfilo que almeja construir uma obra que consiga projetar na tela.
Os diálogos históricos com nossa própria trajetória são inúmeros: André Gatti, Helena Ignez, Jean-Claude Bernardet e Mario Bortolotto, são alguns dos que compõem o elenco da obra. Não apenas uma questão de reconhecimento dessa extensão que há em nossa cinematografia, mas uma reverência a tudo aquilo que representa uma concretização de ideias e renascimento. Um arcabouço que ultrapassa a própria obra e reflete em lirismo memorial esse vigor de se realizar cinema com o pulsante – e a lente em espaços iguais. Burlan é lembrado por alguns deslizes ao longo dos anos, mas deveria ser comentado pelos acertos. “Ensaio sobre o fracasso” é um momento único em sua trajetória e deve ser recordado como tal.
Diferentemente do que outros projetos almejam, a produção não tem a pretensão de ser uma revisão do cinema brasileiro ou mesmo um ode a tal cinefilia – e ainda que o seja, ocorre por tabela. É uma narrativa que se concentra nessa necessidade de expôr um amor que não se resume à sala de cinema, muito menos às páginas de livros, mas sim em cada poro de nossos corpos, sete dias por semana, 24 horas por dia. Viciados não, nós vivemos isso.
Entre os cortes é possível compreender a carga ensaística que transa com o documentário, quase expurgando uma ficção que apenas dá a linha para que se siga acompanhando a projeção. A proposta cotidiana funciona bem por sua interseção profunda com o laboratório prosaico da produção “marginal”, posto que carece de fundos, mas é feita na vontade de se filmar. Cachoeira.
Fuller em citação, Jairo, Ozu, Godard, Burlan. A funcionalidade do cinema encontra sua forma enquanto expurgo de redenção e lírica de lamento a partir da História e do suposto fracasso. A memória se torna uma fiel amiga e uma lembrança tenebrosa que assombra aqueles que sonham em ocupar o ecrã mas são recusados desta trajetória. A beleza de “Ensaio Sobre o Fracasso” está em confrontar determinadas necessidades de padrões, seja do mercado ou dessa categoria crítica que se eleva mais que a própria arte. Contudo, se hoje podemos trocar com os olhos que traçaram esse panorama ao longo dos anos, devemos a cada um destes que estão presentes no filme.