Mostra Um Curta Por Dia 2025

Encontro com o Ditador

Purificação e Morte

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2024

Encontro com o Ditador

Rithy Panh é um cineasta cambojano de um só tema: filmar, seja documentário (a maior parte), seja ficção, o rastro sangrento deixado em seu país por Pol Pot, líder do Khmer Vermelho, possivelmente o autocrata mais radical dos tempos modernos – em apenas uns poucos anos, principalmente entre 1975 e 1979, foi ele quem comandou a máquina estatal de morte que aniquilou mais de 2 milhões de vítimas, ou quase um quarto da população do Camboja à época, 7 milhões de pessoas. Tudo isso em nome de um projeto revolucionário emanado de um maoísmo obscuro, que se propunha a purificar a sociedade de qualquer laivo de exploração capitalista.

Encontro com o Ditador”, finalizado em 2024 a tempo de ser exibido no Festival de Cannes, é o último da série, uma ficção histórica inspirada em alguns fatos reais e outras tantas licenças dramáticas. Passado em 1978, no Camboja – agora renomeado de Kampuchea democrático – o filme acompanha a visita de três franceses, convidados oficiais, por certo. Naquela altura ninguém entrava ou saia das fronteiras cambojanas sem autorização, tratava-se de um regime completamente fechado (hoje o paralelo seria a Coréia do Norte, fechado há décadas). Os visitantes – uma jornalista (vivida pela excelente Irene Jacob), um intelectual simpatizante das causas revolucionárias (Grégoire Colin, outro bom ator) e um repórter fotográfico negro, experiente em situações de guerra (Cyril Gueï). O objetivo era não somente colher dados e fotos, mas sobretudo conseguir entrevista exclusiva com o recluso e sinistro Pol Pot, virtualmente desconhecido no Ocidente.

Gradativamente, o cerceamento imposto aos movimentos do trio, adicionado à brutalidade que se insinua no tratamento que lhes é reservado, domina a cena. O país experimentava uma devastadora crise econômica, os esforços de seduzir os estrangeiros com uma propaganda tosca revelam-se infrutíferos – mesmo o intelectual, que fantasiava a revolta do Khmer como libertadora das massas populares exploradas, deixa-se tomar por dúvidas e incertezas. Fileiras de camponeses escravizados realizando trabalhos coletivos, vigiados por jovens soldados absurdamente fanatizados, todos acompanhados por irascíveis comandantes – o clima de um totalitarismo acachapante é indisfarçável.

Encontro com o Ditador” tem como base o livro que a jornalista norte-americana Elizabeth Becker publicou em 1986, When the war was over. The Voices of Cambodia’s Revolution and Its People (infelizmente não traduzido no Brasil). Becker viveu em Phnom Penh, capital do Camboja, durante dois anos, e retornou ao país em dezembro de 1978, apenas algumas semanas antes do colapso do Khmer Vermelho. Desta feita, estava acompanhada por James Caldwell, escocês e escritor marxista conhecido como “amigo do regime”, e Richard Dudman, jornalista. O encontro com Pol Pot ocorreu no último dia, sexta-feira, 22 de dezembro de 1978. Na noite seguinte, Caldwell foi assassinado em circunstâncias misteriosas: pela manhã os dois sobreviventes e o caixão do escritor pegaram o avião de volta para Pequim.

Como produzir um registro audiovisual diante de um cenário como esse, uma pulsão de morte institucionalizada? O resultado dessa pulsão, o vazio deixado pela desaparição de milhões de seres, paira no ar, contagia o espaço – entrecortadas ao longo das imagens coloridas de o “Encontro com o Ditador”, surgem cenas de arquivo que exibem a barbárie, dentre as poucas que escaparam do apagamento perpetrado pelo regime, como lâminas afiadas que sulcam a retina. A máquina paranoica que engendrou essa política de extermínio parece estar além da compreensão dos parâmetros habituais das ciências sociais, mais ainda da ciência política. A única certeza é que aconteceu, e pode acontecer de novo.

Rithy Panh tinha apenas onze anos quando o Khmer Vermelho tomou o poder, seus pais foram enviados para campos de trabalho e morreram. Em 1979, conseguiu fugir para a Tailândia, e França em 1980. Para ele, o mergulho trágico de seu país pode ser definido como um auto-genocídio, um suicídio coletivo levado às últimas consequências. Dentre seus vários trabalhos, o documentário “S21: A Máquina de Morte do Khmer Vermelho”, de 2003, é dos mais cruciantes. “S21” foi um centro de tortura e morte no coração da capital, instalado na antiga escola “Tuol Sleng”, que em khmer significa “Montanha das Árvores Venenosas”.

Kang Kek Iew, conhecido como “Duch”, chefiou o centro e foi responsável pela execução de milhares de mortes – seriam pelo menos 14 mil. Ele foi objeto de outro demolidor filme de Panh, “Duch, mestre das forjas do inferno”, de 2011.

3 Nota do Crítico 5 1

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