E, Em Direção a Becos Felizes
Olhar testemunhal do real pelo filtro da paixão
Por Paula Hong
Festival de Berlim 2023
Cinema: vetor inexplicável de encantamento, seja pelo próprio cinema, por alguém, por um país e suas produções artísticas. O documentário de estreia de Sreemoyee Singh, “E, em Direção a Becos Felizes”, não esconde a pessoalidade com que registra e guia a narrativa que perpassa pela paixão pelo Irão e sua cultura, sobretudo o cinema e a poesia de Forough Farrokhzad, ao passo que faz dessa paixão ponto inicial para tecer diálogos com os desdobramentos advindos dela — uma visão sincera sobre o país e as censuras que o governo infringe sobre seus artistas através dos anos, sobretudo sobre as mulheres. Para tanto, a cineasta usa da predominância da câmera da mão, de algumas entrevistas informais e da narração em voice-over: com estes recursos simples, Singh compartilha conosco homenagem ao cinema irariano, laços que nutriu durante o processo e uma perspectiva capaz de enxergar, com nitidez, carinho e respeito, pela resistência frente às consecutivas censuras do governo contra seus artistas e ativistas.
O túmulo de Forough Farrokhzad, rodeado por admiradoras, simboliza logo no início do filme o agrupamento de um sutil e, por vezes, cuidadoso, mas não menos corajoso, momentos em que a importância da figura de Farrokhzad é colocada como porta-voz dos sentimentos e pensamentos das mulheres iranianas. Num país onde os preceitos religiosos são o ponto referencial que encobre e atravessa as decisões para ditar e planificar comportamentos, manter a memória da poeta viva, admirando e reverberando suas obras, mostra-se um movimento de resistência incorporado ao filme por intermédio do registro e da atenção direcionada ao presente dos acontecimentos.
Com isso, reminiscente dos tempos de faculdade, período no qual o contato com o cinema iraniano foi a faísca que acendeu interesse e paixão, a diretora estende esse contato para sua estadia no país. A imersão na cultura a permite alongar laços com artistas que admira, como Jafar Panahi, que nos longos passeios de carro, conta e reconta aspectos da repressão do governo sobre seus filmes, e como a censura o impulsionou a realizar obras que mantivessem o aspecto da resistência ao passo que pudessem pavimentar caminhos para expressar e versar, através das imagens em movimentos, sobre assuntos barrados pelos filtros da censura.
O momento da entrevista informal e bem-humorada com o cineasta Mohammad Shirvani exemplifica as repressões “modernizadas” do governo, como o barulho de construção perto de sua casa tornando quase impossível que a conversa sobre temas que permeiam seus filmes sejam explorados, como o erótico, o corpo da mulher, o contato físico entre homens e mulheres. Shirvani pensa que a moralidade advinda da religião é tão intrínseca ao pensamento do povo irariano que as formas de censura acontecem de forma consciente e inconsciente, mas isso não impede que continue filmando. Ao contrário, é fonte de incentivo para o cineasta.
E assim Singh guia seu filme “E, em Direção a Becos Felizes”, entrando em contato com vozes proeminentes dessas resistências enquanto se insere na obra, elevando a cultura iraniana e a influência desta na sua vida. Para além da pessoalidade, da câmera na mão (às vezes no tripé), funcionando como um olho testemunhal dessas manifestações de resistência, um dos aspectos mais interessante da obra é acrescentado quando direciona sua atenção para as mulheres — sejam elas no ônibus, andando pelas ruas, mas em especial as que desafiam as normas pautadas pelas orientações da religião (hijab, chador), as que protestam contra os motivos que tiram seus filhos e os mandam à guerra e quando aborda o contraste das pressões estéticas da mulher num país onde é proibido desviar do padrão de vestimenta. É nesse confuso contraste que as vozes de Nasrin Sotoudeh, Jinous Nazokkar, Aida Mohammadkhani, Mina Mohammadkhani, Mohammad Shirvani e Maede Tahmasbi emergem mais alto, oferecendo perspectivas desde os campos do ativismo, dos estudos literários e fílmicos até de vivências como mulher no Irão.
Portanto, o incômodo da pouca quantidade de mulheres ativamente participantes durante o documentário “E, em Direção a Becos Felizes” é pouco a pouco alternado entre momentos de reflexão por intermédio olhar zeloso e sincero com que Sreemoyee Singh faz da sua paixão vetor para investigar, a partir do cinema irariano, repressões que vão além do escopo artístico: ele se alastra por todas as instâncias. Mas o bonito é que se encontra resistências nelas, nos encontros e nos reencontros promovidos por esse movimento do resistir. Não há passividade que sustente tão fortemente a inércia que planifica os modos de expressão de um país. Pelo contrário, são forças que o direcionam a becos mais felizes, mesmo que estreitos.