E a Festa Continua

Entre esperança e ingenuidade

Por Pedro Sales

E a Festa Continua

Marselha é a segunda maior cidade e a mais antiga da França. Localizada no litoral sul do país, conta com mais de 800 mil habitantes. “Nunca chove e todo mundo é de esquerda aqui”, define um personagem, “nada de burgueses, nem de racistas ou de fascistas. Só tem gente boa”. O aspecto político da cidade delineado pela frase torna-se ainda mais evidente ao espectador quando se lembra de que o hino francês é intitulado como “A Marselhesa”, em homenagem ao canto revolucionário dos habitantes da cidade rumo à capital em plena Revolução Francesa, . É, portanto, dentro deste contexto cultural e político que o diretor Robert Guédiguian constrói o novo longa “E a Festa Continua“. Para além do texto que reverencia e homenageia a cidade, o cineasta tece relações familiares dentro de uma comunidade progressista, esperançosa, mas representada, por muitas vezes, de maneira ingênua.

Tomando como ponto de partida o terremoto na Rue D’Aubagne, que vitimou oito pessoas em 2018, o longa se centra nos esforços comunitários, desde a ajuda aos desabrigados à eleição de alguém capaz de ter um olhar mais humano. No meio disso tudo, a família de Rosa (Ariane Ascaride) se destaca. Ela como uma líder dentro da comunidade, inclusive cotada para concorrer nas eleições. Seu filho Sarkis (Robinson Stévenin) é um dono de bar amistoso, que honra suas origens armênias e deseja se casar com Alice (Lola Naymark), regente do coral e voluntária no apoio aos desabrigados. Quando o pai da moça, Henri (Jean Pierre Darroussin), aparece para dar a bênção ao casamento, um novo amor surge. Entre ele e Rosa. Dessa forma, este é um filme que se alterna em uma perspectiva de macro e microcosmo. O primeiro a situação da cidade, o segundo os laços familiares que se estreitam duplamente. Apesar de qualquer moralismo que poderia se depreender da relação mãe-do-noivo e pai-da-noiva, a obra jamais aponta para este caminho e mantém, por quase toda rodagem, otimismo e leveza, uma confiança na prosperidade comunitária e individual.

Por mais que “E a Festa Continua” habilmente evidencie, desde a abertura, essa dicotomia narrativa, muitas vezes acaba se atropelando e deixando a desejar a construção de alguns temas. A questão identitária da Armênia, do genocídio e do novo conflito com Azerbaijão surge en-passant – para me valer do termo francês. É algo mencionado algumas vezes, mas sequer aprofundado. Em relação aos personagens, Tonio e Minas, irmão e filho de Rosa, respectivamente, sofrem do mesmo destino. Pouco aparecem e, pela falta de ligação dos dois com o que pode ser considerada a “trama principal”, tornam-se muitas vezes dispensáveis. Ou seja, o filme quer abordar diversas temáticas, com um elenco relativamente grande, mas no meio do caminho se atropela, deixando alguns desenvolvimentos pela metade. No fim das contas, os destaques se atém ao quarteto mencionado anteriormente e a questão do terremoto. Pode-se dizer, então, que seriam cinco os personagens principais: Rosa, Henri, Sarkis, Alice e a própria Marselha.

A fotografia, neste sentido, valoriza e homenageia a cidade. Consegue criticar silenciosamente ao demonstrar as ruínas e apartamentos abandonados na iminência de um novo tremor, ao mesmo tempo que tece elogios à beleza natural de Marselha. O mar em segundo plano enquanto o casal janta, ou o azulado da noite na varanda provocam essa sensação estética de frescor da cidade francesa. O mesmo se dá também na paixão entre Rosa e Henri que, a despeito da idade mais avançada em relação aos demais, evoca um sentimento juvenil e impulsivo, como reforçam os zooms-in out, aproximando-se e afastando-se de forma enérgica do casal. É por meio dessa visão generosa e afetiva para com a cidade e seus personagens, refletida também na ausência de conflitos e na resolução simples do único que aparece, que o filme cria seu tom esperançoso pautado na renovação e união comunitária.

Portanto, “E a Festa Continua” assumidamente carrega e envolve o espectador em uma aura mais leve, de otimismo e confiança frente ao futuro, com a bela visão de que tudo pode – e vai – melhorar. Esse aspecto, no entanto, lida com a fragilidade da proposta política do longa, que soa demasiadamente idealista e ingênua. Em comparação a “O Melhor Está Por Vir“, de Nanni Moretti, em que a pauta política é desenvolvida com uma visão mais realista e crítica da própria bandeira que o protagonista levanta, este filme é uma espécie de antítese. A luta e o protesto inicial das cenas que abrem o longa se convertem em uma crença condescendente de que o progressismo da esquerda e a união serão a melhor solução, sem resistência alguma dos demais. A questão central é que o fervor dos protestos pelas mortes se perde dentro da graciosidade proposta pelo longa, e a própria cena pretensamente catártica é apenas poética, e bonitinha. A estátua de Homero no meio do bairro ouve primeiro aos gritos contundentes contra a prefeitura para depois ouvir um discurso delicado em que panorâmicas intercalam o orador. Por fim, nada tira o mérito agradável da carta-de-amor à Marselha e dos laços de família, mas como homenagem às vítimas do terremoto, falta uma mão mais firme de responsabilização dos culpados, escolhe-se o destaque autocongratulatório para o esforço comunitário.

2 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta