Druk – Mais Uma Rodada
O que é a juventude? Um sonho. O que é o amor? O conteúdo do sonho.
Por João Lanari Bo
Só mesmo um filme dinamarquês, “Druk – Mais Uma Rodada”, para abrir com uma citação dessas, do grande filósofo Soren Kierkegaard, igualmente dinamarquês. Uma citação a um tempo piegas e empática, mas também metalinguística, ou seja, uma linguagem usada para descrever algo sobre outra linguagem. Brilhante, sem dúvida: ainda bem que Kierkegaard nasceu e viveu no século 19, senão cairia na tentação de ganhar dinheiro e praticar uma “filosofia de auto-ajuda”, dessas que infestam o mercado editorial dos amigos do saber hoje em dia. Thomas Vinterberg, o diretor de “Druk” – o título na língua original tem uma potência acústica intraduzível – é um exímio manipulador dramático, um dos artífices do manifesto Dogma 95, lançado a um quarto de século, 1995, ano das comemorações do centenário do cinema, com o objetivo de “purificar” o meio cinematográfico e atrair o público não “alienado ou distraído pelas superproduções”. “Festa”, de 1998, o longa de estreia de Vinterberg, é um cult incontornável, exemplo cabal dos preceitos do manifesto.
Se o Dogma foi ou não malcriação de jovens rebeldes, não importa: já “Druk – Mais Uma Rodada” é um despertar do sono dogmático de quatro professores de meia idade, entre eles Martin (Mads Mikkelsen, em notável atuação), especialista em história particularmente entediado e beirando a invisibilidade. “As pessoas me entendem tão mal que nem mesmo entendem minha reclamação sobre elas não me entenderem” diz Kierkegaard em outra passagem, definindo com precisão mais de 100 anos antes um sentimento de Martin em relação à sua esposa, Anika, vivida na tela pela sueca Maria Bonnevie, esplêndida atriz. Quando Martin pergunta a Anika se ele se tornou aborrecido, um silêncio pesado paira no ar: “nosso problema é que você nunca está realmente presente. Você é completamente invisível”, retruca a mulher. Com invisibilidade não pode haver diálogo no casamento, e Martin começa a derivar no fluxo diário de deveres e obrigações, com filhos e alunos, dispersando o foco como se estivesse numa zona fantasma. Logo bate o princípio da realidade: pais e alunos se reúnem para admoestar o professor, com vistas ao seu cancelamento.
Entra em cena o psiquiatra norueguês Finn Skarderud, referência téorico-dogmática do filme, e também psiquiatra na vida real (membro do Hospital Universitário de Oslo e Comitê Olímpico Norueguês). Na celebração dos 40 anos de um dos amigos, regado a uma seleção alcoólica de primeira classe, surge na conversa menção à teoria de Finn: todos nascemos com um teor de álcool no sangue impiedosamente baixo, 0,05%; trata-se de um déficit, sem dúvida. Ainda que o psiquiatra não tenha vindo a público defender suas proposições, sabe-se que teria chegado a essa conclusão usando dados de animais. Isto é irrelevante, aparentemente: o quarteto abraça a teoria, Martin sobretudo, e todos concordam em superar tal deficiência crônica do ser humano e reunir evidências dos “efeitos psicológicos, motores, verbais e psico-retóricos” do álcool, para “um estudo do aumento do desempenho social e profissional”.
Experimento de si mesmos: logo Martin empolga os alunos numa aula sobre 2ª guerra mundial, devidamente calibrado com um shot providencial de vodka. O velho Churchill dizia: “Eu nunca bebo antes do café da manhã”, enquanto Hitler jactava-se de ser abstêmio. Quem venceu a guerra? indaga o pilhado professor, que arremata com o exemplo de Ernest Hemingway: beber diariamente, mas apenas até as oito da noite. No dia seguinte sua criatividade vai transbordar – a audiência veio abaixo com aplausos ao mestre. Na sequência, uma dobradinha camping/canoagem com a família, durante o qual ele e Anika fazem amor em sua tenda, pela primeira vez em muito tempo.
E o velho Kierkegaard ajuda na escalada da euforia, é forçoso reconhecer. Um dos alunos enuncia em certo momento, com um sorriso nos lábios, outra famosa máxima do filósofo: “Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se”. Às vezes uma leitura demasiado literal pode levar ao desastre. Todos os quatro amigos potencializam as performances individuais, e no ápice da vitória sucumbem a um pileque monumental, mesmo para os padrões locais (um dos méritos do roteiro é mesclar com habilidade alegrias e vitórias com o baixo astral das ressacas). O casamento de Martin, um dos eixos estruturantes da narrativa (e da sua vida), desaba: “não me importo se você bebe com seus amigos, essa não é a questão, o país todo bebe como um maníaco”, conclui Anika.
Não se conhece a reação dos dinamarqueses a essa assertiva, mas a invisibilidade do professor parece ter voltado, acrescida dos constrangimentos pós-bebedeira. Mais uma vez Kierkegaard dá o tom: “Por causa de sua tremenda solenidade, a morte é a luz na qual as paixões, boas e más, tornam-se transparentes, não mais limitadas pelas aparências externas.” Incrível como seus pensamentos caem como uma luva na trama e na composição dos personagens de Vinterberg.
Nesse filme bem equilibrado, não há espaço para moralismo excruciante nem para devassidão excessiva. Com orçamento relativamente modesto de 4,5 milhões de euros, câmera de mão de Sturla Brandth e modus operandi improvisado, “Druk – Mais Uma Rodada” atualiza com méritos de sobra os preceitos do Dogma para o presente da pandemia, de contenção e dissabor. Como diz Kierkegaard: “Pertence à imperfeição de tudo o que é humano que o homem só possa atingir seu desejo passando por seu oposto”.
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