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Drive My Car

Você nunca conheceu a felicidade, mas espere! Vamos descansar

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2021

Drive My Car

Drive My Car”, dirigido em 2020 por Ryusuke Hamaguchi e lançado em 2021, surpreende logo na largada: seu prólogo, um ato de abertura, dura 40 minutos – e entram os créditos. É um tempo estendido, sobretudo num filme em que cada minuto é carregado de significação, mesmo que nada aconteça (não é à toa que ganhou o prêmio de roteiro em Cannes). Nesses 40 minutos somos introduzidos, parcimoniosamente, ao casamento entre o ator e diretor de teatro Yusuke (Hidetoshi Nishijima) e a roteirista Oto (Reika Kirishima), uma parceria íntima e criativa, sensual e integral – que, no entanto, acomoda infidelidades. A perda da filha, anos antes, paira insidiosa nessa atmosfera, e a morte prematura de Oto, ao final do prólogo – tudo parece levar Yusuke a se ausentar da vida. Corta para os letreiros: dois anos depois, a narrativa reengata no tempo linear, ele aceita um convite para dirigir em Hiroshima uma produção multilíngue de “Tio Vanya”, o clássico de Tchecov, num festival de teatro. O texto do russo funciona como cadeia de transmissão mental entre Yusuke e Oto: antes de sua morte, Oto gravou-se lendo “Tio Vanya”, como fazia para ajudar nos papéis que Yusuke precisava memorizar. Ouvi-la entre o hotel e o teatro, como passa a fazer todos os dias a caminho dos ensaios, implica numa imersão sonora que funciona como exercício teatral, mas também como autoflagelo – o cassete é reproduzido no seu amado carro, um vetusto Saab 900 vermelho com 15 anos de uso, espaço carregado e encasulado, que trafega como se estivesse num loop nas estradas de Hiroshima, fluidas e silenciosas.

Um tempo que desliza, escorre, exposto às intempéries que inevitavelmente afloram quando Yusuke aceita dirigir um texto tão entranhado em sua memória. “Drive My Car” – título mais do que apropriado – gira em torno de um laboratório teatral: a pretensão estética do ator/diretor é organizar “Tio Vanya” em camadas de representação linguística, em palavras do genial escritor enunciadas em diferentes línguas: mandarim, tagalog, japonês, coreano e língua coreana de sinais. A estratégia já tinha sido delineada antes de Oto morrer na montagem de “Esperando Godot”, em que alemão e indonésio foram utilizados. Num país insular como o Japão, com uma língua igualmente insular, a opção de Yusuke não é trivial: no filme de Hamaguchi – e também no conto de Murakami, em que foi baseado – a opção assume um caráter político, uma abertura que se choca com o nacionalismo linguístico japonês. O arremate final dessa estratégia foi na audition, com a seleção de uma atriz muda (Yoo-rim Park) que se expressa em sinais coreanos. Ao final da peça, com os braços em volta de Yusuke – derrotado pela misantropia de seu personagem Vanya – é ela quem sinaliza, como ninguém, o consolo derradeiro: você nunca conheceu a felicidade, mas espere! Vamos descansar.

A Coreia, não custa lembrar, foi dominada e tiranizada pelo Japão desde 1905, quando se tornou um protetorado japonês, até 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, coreanos foram enviados para trabalhar (como escravos) nas nações ocupadas pelo exército imperial, ao mesmo tempo que milhares de mulheres (incluindo crianças) foram forçadas pelos japoneses a prostituir-se (as chamadas “mulheres de conforto”). Mas “Drive My Car” também sulca em conflitos no entorno de Yusuke: no espaço reduzido do Saab 900, a jovem motorista Misaki (Toko Miura), introvertida e cautelosa, presença corpórea próxima, também é portadora de uma história pessoal traumática – motivada pela mãe, dançarina de cabaré e bipolar. O silêncio desconfortável entre os dois é ocupado pela voz desencarnada de Oto lendo as linhas da peça de Tchecov, contracenadas por Yusuke. Um elo fantasmagórico, construído no deslize do trajeto e no volume acústico das falas, se desenvolve entre os dois – até que, entre eles, se instale o nervoso e impulsivo Takatsuki, em quem Yusuke reconhece o amante de sua falecida mulher.

O método que Yusuke utiliza na montagem de “Tio Vanya” para introjetar os personagens nos atores, é, em última análise, fazê-los ouvir a si mesmos: com clareza suficiente, para que os outros possam intuir o que se está tentando dizer. Ao fim das intermináveis repetições – uma das atrizes compara a leitura ao zumbido de um sutra budista – o elenco chega ao autoconhecimento temporário de suas personas. Hamaguchi, o diretor do filme, parece orientado pelo mesmo objetivo, por um caminho inverso: a verdade de seus personagens está em algum lugar entre a visão ensolarada do mar em Hiroshima, antesala do palco teatral, e as colinas nevadas de Hokkaido, lar de Misaki.

5 Nota do Crítico 5 1

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