Disco Boy
Olhar estrangeiro
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
A Legião Estrangeira Francesa é uma chance de renascimento para imigrantes que desejam viver legalmente na França. Após três anos de serviços, o soldado de fato se torna cidadão francês, ou antes desse período nos casos em que são feridos. Assim, prevalece o lema “français par le sang versé” (francês pelo sangue derramado). O militar, então, pode escolher um novo nome, começar uma nova vida. Algo bem semelhante aos vikings que, quando batizados, rejeitavam a herança “pagã” e adotavam um nome cristão. O diretor estreante em longas Giacomo Abbruzzese insere sua narrativa nessa realidade de esperança, conflitos e traumas. “Disco Boy“, que esteve na Competitiva Internacional do Olhar de Cinema 2023 e na Competição Oficial do Festival de Berlim, é um filme em que o olhar estrangeiro é pontuado a todo momento, assim como a potência dos corpos, ora em guerra, ora dançando, iluminados por um onipresente neon.
Aleksei (Franz Rogowski) é um jovem bielorrusso que, junto de seu amigo Mikhail (Michal Balicki), viaja ilegalmente a Paris para tentar a sorte na Legião Estrangeira. Quase 6 mil km longe dali, Jomo (Morr Ndiaye) é um guerrilheiro nigeriano que tenta impedir a ocupação colonialista em seu vilarejo. Abbruzzese dedica a primeira metade do longa para consolidar o ambiente de treinamento da corporação. Dessa forma, a repetição dos exercícios por meio da montagem reforça a disciplina exigida, a confiança nos parceiros e, consequentemente, a pressão. Os travellings rápidos na mata e os planos gerais com a subida de rastejamento transmitem, para além da disciplina já citada, a urgência em estar atento e apto fisicamente. O diretor, logo após esse estabelecimento, propõe uma ruptura com o núcleo de Aleksei. A câmera, voltando ao ambiente que abre o filme, insere-se na realidade da Nigéria e dos guerrilheiros de Jomo. Tomando o rio Níger e de fuzis em punho, o MEND (uma espécie de Boko Haram ficcionalizado, mas de origem nacionalista e não religiosa) defende as riquezas e a cultura do país. É inevitável que os caminhos dos dois se cruzem.
Um elemento primordial de “Disco Boy” é a visão do estrangeiro, tanto em um aspecto literal quanto metafórico. A própria produção do longa evidencia isso de certa maneira. Os atores interpretam outras nacionalidades que não a deles e falam em línguas que não são maternas. Rogowski é um alemão que interpreta um bielorrusso que fala francês, por exemplo. O mesmo se aplica ao diretor, um italiano, vivendo na França e filmando a Nigéria. É natural, portanto, que o longa represente com um distanciamento de quem observa, sem a proximidade que teria caso vivesse tal realidade. Nesse aspecto, o filme às vezes pende ao exagero e exotismo, sobretudo em cenas na África, que envolvem ritos religiosos. Se por um lado o olhar estrangeiro se reflete negativamente na direção de Abbruzzese, pelo outro, os atores conseguem expor essa limitação e adequá-las narrativamente à temática central do longa: entender o outro, tentar vê-lo com os olhos dele.
Os corpos, por sua vez, também exercem destaque na obra. No treinamento, os homens descamisados se tocam e se abraçam, gestos de confiança – o caráter homoerótico da Legião Estrangeira se manifesta mais claramente em “Beau Travail” (1999), filme de Claire Denis que inclusive possui muitas similaridades com este longa. A manifestação da potência corporal também se dá por meio da dança. Em um primeiro momento como um ritual entre Jomo e Udoka (Laetitia Ky), iluminados apenas pela luz das fogueiras. Os movimentos são bruscos mas sincronizados se assemelhando à dança contemporânea. A ação adquire um estado de transe, a dança parece se tornar uma incorporação que explora os limites entre real e ficção, vivido e interpretado. Depois, ela adquire um caráter de libertação e escapismo nas boates com luzes neons estroboscópicas e música alta. Os corpos, por fim, entram em conflito. Nessas cenas, a fotografia captura tudo com luz natural, ficando subexposta, até o momento em que Abbruzzese deforma a violência por meio da visão térmica. Essa desconstrução da imagem questiona a cega confiabilidade do que se vê quando abstrai a ação, mas preserva o movimento.
Da mesma forma que a dinâmica dos corpos é importante para “Disco Boy“, os olhares também são. A câmera explora esse recurso por meio de close-ups. Em alguns momentos é curiosidade, em outros, atormentação. Franz Rogowski, então, possui uma interpretação que se foca nessa dicotomia, sobretudo pós-missão. No livro de Albert Camus “O Estrangeiro”, o protagonista vive algo parecido, mas mergulhado em indiferença. Por outro lado, Aleksei, ou melhor, Alex sente remorso e lida de maneira palpável com os traumas, visões e desejos. A desesperança é tanta que o refúgio se torna a vida noturna, mas quando tudo parece superado, os fantasmas insistem em retornar e o melhor a fazer é se entregar ao passado, convidá-lo para dançar. Portanto, o longa, por meio do olhar estrangeiro, constrói uma narrativa que encara muito bem seus espaços, nacionalidades e diferenças. Apesar de eventuais deslizes, principalmente quando o diretor espetaculariza e objetifica seus personagens, o filme desenvolve bem a relação entre os corpos que vão da violência brutal à dança sinérgica.