Diamantes
Pedras, fantasmas e extração
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Nos primeiros minutos de projeção, um personagem descreve o diamante como “uma pedra viva”, relatando seu caráter “imutável”, onde independentemente do que se faça com o diamante, ele sempre será o mesmo. As pessoas são diferentes.
“Diamantes”, dirigido por Daniela Thomas, Sandra Corveloni e Beto Amaral, é um documentário que possui consciência da necessidade de se contextualizar a região de São João da Chapada, distrito de Diamantina, e de apresentar suas personagens de forma convencional e organizada, pois a conexão história-local é parte fundamental na construção do filme. Nesse sentido, após a introdução, existe um esforço para conseguir introduzir as protagonistas como representantes de uma totalidade, traçando suas trajetórias, histórias familiares e memórias através da oralidade, o que funciona muito bem, pois com a ausência de material de arquivo para complementar imagens e o ritmo da montagem, o documentário transita entre o rosto dessas mulheres, objetos de suas residências, lazer e cotidiano, ambientando a experiência em lugar particularmente bem marcado.
Não por acaso, o avanço da projeção se torna doloroso para o público, tanto por uma representação do estado de subdesenvolvimento, quanto pela particularidade de suas vivências. “Diamantes” possui depoimentos terríveis: estupro, violência, ameaça, vício, abuso sistemático e todo tipo de mazela social ao qual as mulheres estão mais sujeitas a sofrerem na sociedade brasileira. Alguns desses segmentos marcam a película de forma irremediável, outros possuem um caráter tão melancólico e sincero que transforma o olhar do espectador para determinada situação ou personagem. Uma das mulheres, ao comentar sobre o falecimento do pai, há 40 anos, diz: “Eu tinha um sorriso maravilhoso. Eu tinha um olhar que brilhava. Mas ele amarelou”.
A construção do filme é cadenciada como blocos de assuntos, onde apesar de não existir uma apresentação formal dos mesmos, conseguimos nos guiar através dos depoimentos, quase todos de dor. Apesar de algumas semelhanças entre as trajetórias, uma história em especial parece sintetizar o sentimento duro que a obra traduz: a história da pedrada. De forma ironicamente perversa, uma chaga acompanha uma das mulheres, apedrejada na região de Diamantina. Essa memória compartilhada ainda conta narrativas e perspectivas diferentes, tanto do acontecimento quanto da intenção da pedrada. Independentemente disso, é particularmente simbólico que a montagem separe um momento para essa narrativa, pois a imaginação dos elementos dessa história, sua gravidade e o que representa, traz uma carga dramática que beira o absurdo.
Por caminhos tortuosos, “Diamantes” atravessa os traumas dessas mulheres, que possuem ressonâncias assustadoras quando pensamos na frequência, e às vezes naturalidade, com que são contadas. E é por essa razão que a experiência de assistir ao documentário está longe de ser agradável, pois entre os amores e amizades que são lembrados, há uma quantidade inimaginável de dor, de todas as naturezas possíveis e uma base de trajetória que marca a particularidade de cada mulher. Nesse processo de extração, citado na sinopse divulgada para o É Tudo Verdade, onde nada se devolve, os processos de mudança são imagináveis através dos depoimentos, e muitas vezes visíveis enquanto essas mulheres contam as histórias, com semblantes mudando, o rosto marejando e um fantasma do passado que parece vagar em suas lembranças e nos lugares onde residem/frequentam.
Diferentemente dos diamantes, as pessoas sofrem e estão expostas à mudanças exteriores, independente de suas vontades. “Diamantes” sabe cadenciar em seu ritmo, através dessa estrutura delimitada de “temáticas” e histórias, sem perder fôlego ao longo da projeção, pelo contrário, após a primeira metade desata qualquer nó que interrompia o fluxo orgânico e parece encerrar sem um fim à altura. E como poderia? É curioso notar que aquele olhar cinematográfico dos primeiros minutos, com apresentações, contextualizações e tomadas que demonstram mais da intimidade dessas mulheres, desaparece completamente para dar lugar à uma espécie de “adeus” à cidade, e o espectador assiste a partida como se procurasse os fantasmas no canto da tela.