Dia dos Pais
À procura do pai
Por João Lanari Bo
Cinema du Reel Film Festival
“Dia dos Pais” é o longa-metragem de estreia de Júlia Murat, codirigido por Leo Bittencourt – a realizadora consagrou-se com seu último filme, “Regra 34“, no Festival de Locarno, quando levou o Leopardo de Ouro. Ambientado na região do Vale do Paraíba, entre Rio de Janeiro e São Paulo, o longa de 2008 segue uma trilha documental intimista, percorrendo uma espécie de cartografia sentimental aleatória e desembocando num reencontro simbólico com a figura paterna – que irrompe na narrativa por meio de um registro oral, objetivamente captado, que se superpõe eventualmente a depoimentos colhidos pela diretora. Nesse trajeto – que flerta com a melancolia, expressa no vazio que as imagens evocam – circulamos nos arrabaldes das cidades que outrora ostentavam poder e riqueza no ciclo do café, entre os séculos 19 e início do 20: Sebastião de Lacerda e Aliança, distritos de Vassouras; Barão de Juparanã, Valença; Palmeiras da Serra, perto de Paracambi; e finalmente Bananal, município paulista que faz fronteira com o estado do Rio de Janeiro.
Espaços com pouquíssima densidade habitacional, população sobretudo negra, a sensação de isolamento geográfico é suspensa pelo trem da Vale carregado de minérios – provavelmente em direção à siderúrgica em Volta Redonda – e um ônibus com estudantes. Planos longos e falas esparsas de moradores, muitos em idade avançada, acentuam a lentidão da passagem do tempo nessas localidades, esquecidas na vertigem do mundo moderno. Uma referência literária que vem à mente é o clássico “Cidades Mortas”, de Monteiro Lobato, livro publicado pela primeira vez em 1919, reunindo contos escritos entre 1900 e 1910. Para o escritor, a região havia entrado num processo de exaustão socioeconômica sem volta, provocado pela velha elite cafeicultora valeparaibana e seus desperdícios, em particular sua falta de racionalidade no trato com as lavouras de café. Para ele, a mentalidade dos chamados barões do café ficou retida num imaginário colonial, tornando-se empecilho ao progresso.
“Dia dos Pais” recolhe também, de certa forma, os resíduos da história, ou as ruínas da história, como diria Walter Benjamin. Na parte final do filme, entretanto, o ritmo acelera: não apenas na edição, mas nas imagens urbanas e adensadas de Bananal e, sobretudo, pela entrada em cena das reminiscências do pai, imantadas no espaço simbólico da fazendas cafeeiras – e os planos finais, em que a realizadora aparece descontraída na fazenda Boa Vista, em Bananal, perfazem a sutura que fecha o círculo. Em nítido contraste com os dois terços iniciais, Murat procura, nesse universo fora-do-mundo, os traços de suas origens, condensados na figura do pai. Essa mudança brusca de tratamento pode desnortear os espectadores imersos no panorama anterior, mas a intenção de ruptura – ou seja, de começar um novo filme dentro do filme – é resgatar a proposta para uma materialidade contemporânea, constitutiva da subjetividade da diretora e, portanto, autoral.
A ironia contida no próprio título do filme – “Dia dos Pais“, uma celebração fora do lugar – já antecipa a mudança de rumo consumada no final. Todas aquelas imagens, toda aquela melancolia das “cidades mortas” que contribuiu para a feitura de um organismo social afetado por uma doença congênita de decadência, perdem o sentido enquanto objetividade histórica: tudo não passava de ambientação sensorial para o desvelamento de uma questão mais profunda e particular, a restauração do afeto paterno. No longa que dirigiu em seguida – “Histórias que só existem quando lembradas“, em 2011 – temos o mesmo motivo e o mesmo espaço cinematográfico, pois o filme foi rodado na mesma região. Neste, mais elaborado e maturado – foram doze anos para concluir o filme, incluindo sete de preparação do roteiro – a história se passa na cidade fictícia de Jotuomba, no Vale do Paraíba, “onde grandes fazendas de café faliram e cidades, antes ricas, se tornaram quase fantasmas”.
Desta feita, Júlia Murat idealizou uma personagem, Madalena, padeira presa à memória de seu marido morto e enterrado no único cemitério da cidade, hoje trancado. E criou uma persona dentro da narrativa para inserir-se no drama, uma jovem fotógrafa vinda da cidade grande que chega no vilarejo à procura de trens abandonados. Aos poucos, ela modifica o cotidiano de Madalena e da própria cidade – uma cidade carregada de memórias afetivas, isto é, fantasmas.
“Dia dos Pais” pode ser apreciado, enfim, como documentário making of e premonitório do filme que viria a seguir, “Histórias que só existem quando lembradas”. A ficção, neste caso, completou o ciclo da realidade.