Desterro
Vestígios da distância e da solidão
Por Pedro Sales
A crítica Laura Mulvey, em 1975, cunhou um novo termo “male gaze” – olhar masculino, em tradução livre. O pensamento da teórica refletia que a obra cinematográfica vigente, sobretudo hollywoodiana, reproduzia uma série de representações tipicamente masculinas e patriarcais. Um exemplo simples é o arquétipo da mocinha que precisa ser salva por um homem. Dessa forma, várias histórias foram consolidadas com base no olhar masculino predominante. Em uma época que cineastas homens eram a maioria nos estúdios, os olhares para as mulheres eram machistas e quase voyeurísticos. Em contraste à teoria do male gaze, surgiu um novo conceito: o female gaze (olhar feminino). A nova perspectiva parte do olhar da mulher para as mulheres espectadoras, rejeitando noções patriarcais e de objetificação. Apesar de ainda serem minoria na produção cinematográfica, as mulheres cineastas e produtoras podem fazer justiça às personagens femininas, por uma visão de pertencimento.
Como retratar uma mulher que lida com a solidão, a falência do matrimônio e o tédio das tarefas domésticas? Dependendo do olhar empregado, a personagem se tornaria uma vilã, uma histérica descompromissada com a própria família. Para Maria Clara Escobar, diretora de “Desterro”, a solidão e os dilemas da protagonista Laura (Carla Kinzo) são retratados com muito intimismo e introspecção. Quando ela parece desconectada de seu esposo Israel (Otto Jr.) e de seu filho Lucas (David Lobo), a família passa por uma transformação com consequências irreversíveis para todos. Não vou me estender nessa premissa, o intuito do filme é manter as descobertas dentro dele, vide a enigmática sinopse original do longa.
A diretora, que também assina o roteiro, opta em dividir a história em capítulos, três no total. Na primeira parte, o filme trata de construir a atmosfera introspectiva determinante para a compreensão dos sentimentos de Laura. A câmera opera com planos longos em que pouco acontece, junto disso há a estaticidade da imagem, nega-se, portanto, qualquer dinamismo visual por meio dos movimentos. O longa possui, nesses momentos, um tom observacional muito tangível. A clausura da pequena cozinha representa como ela se sente em casa, e o minimalismo cênico não adiciona mais vida aos cenários. Os diálogos com o marido no café da manhã, por exemplo, falam de tudo e nada ao mesmo tempo. As conversas partem do trivial e cotidiano (uma ida à casa da mãe, o filho) para o especulativo (o que faria se o mundo acabasse). Em ambos os casos, falta uma ligação entre eles. Tudo decorre em um tom monocórdio e sem emoção.
O ritmo, por consequência do ar atingido, se torna lento, beirando ao arrastado. O que muda e traz um pouco de vida são alguns recursos técnicos de montagem, como os jump cuts e a descontinuidade lógica das cenas, com o som que varia do campo ao extracampo. Essa construção causa desconforto também, associando-se com a forma que a protagonista se sente dentro da própria casa: deslocada. Sendo sincero, “Desterro” é bem efetivo em manter o desamparo, tanto narrativamente quanto pela mise-en-scène. Além da montagem, a fotografia prioriza o que eu chamo de planos vazios ou inanimados. Escobar filma o chão, a mesa sem ninguém e os objetos da casa, o último em um plano sequência . Esse sentimento permanece durante todo o filme, apesar da maior efetividade no primeiro capítulo.
Um problema desse estabelecimento emocional de Laura é a duração. A repetitividade deixa maçante uma ideia que já tinha sido bem desenvolvida nos vinte minutos iniciais. Dobra-se, então, esse tempo e o filme infelizmente cai em redundância. O próximo capítulo, por sua vez, flui melhor narrativamente quando o desamparo da protagonista dá vez ao desespero de Israel. Se a feição de Laura era fria e distante, ele demonstra a todo momento sua aflição em que ninguém pode ajudá-lo. A solidão, inicialmente desenvolvida pela esposa, agora acompanha Israel. A câmera enquadra a figura dele em primeiro plano e minimiza seu tamanho com muitos espaços vazios, ressaltando a situação que ele enfrenta e como enfrenta, só. Não tem como remediar, e a solução é só correr e gritar.
A diretora estrutura a narrativa com a não-linearidade, como o espectador depois observa. O último capítulo retorna para Laura, agora não tão só. O silêncio e solidão são interrompidos pela presença feminina. Desde o início, existe o argumento de que a protagonista se sente mais confortável com outras mulheres. A sororidade toma lugar, agora, em um ônibus. “Uma viagem resulta em várias viagens” e em várias histórias. As passageiras olham para a câmera e recitam seus monólogos, suas histórias, o que deixaram para trás. A personagem de Bárbara Colen engata freneticamente na métrica de Angélica Freitas, em que limpeza e bondade são atributos correlacionáveis nas mulheres. O vigor poético encontra respiro, a liberdade é uma dança com movimentos fortes, mesmo tocando uma insólita canção portuguesa.
“Desterro” sofre com seu DNA incorrigível de “filme de festival” – inclusive foi selecionado no Festival de Roterdã. Para bem ou para o mal, a obra de Maria Clara Escobar segue e cumpre códigos-base comuns a obras do circuito de festivais. Por um lado, isso afasta o público geral, acostumado com narrativas “amarradinhas” e enlatadas. Pelo outro, o filme possui liberdade criativa para contar a história de Laura com inovações formais e narrativas. Outro problema, para mim, é o distanciamento da protagonista. O primeiro capítulo constrói tão bem essa ideia que acaba saindo pela culatra, a ponto de não conseguir conexão emocional com a personagem. Contudo, é notável o peso enfrentado por ela. A cineasta alcança o desejo da liberdade e a natureza inflamável desse sentimento, como uma casa em chamas.