Destacamento Blood
O maior crime norte-americano
Por Vitor Velloso
Netflix
Alegar de forma sumária que Spike Lee (de “Infiltrado na Klan“) é um “oportunista” é de um mau-caratismo sem tamanho. Djonga, a quem devemos ter a honra de sermos contemporâneos, diz em música: “Dizem que só falo das mesmas coisas, É a prova que nada mudou, nem eu nem o mundo”. Não se trata de oportunismo, se trata de reafirmar posições históricas do negro na sociedade americana, aqui incluindo América Latina, e de confrontar o determinismo branco na visão de construção dessa mesma proposta de história. Logo, se um dos momentos mais potentes de “Eu não sou seu negro”, de Raoul Peck, é escutar na voz de Samuel L. Jackson, parafraseando James Baldwin, “A história da América é a História do Negro na América. E não é uma imagem bonita.” O que faria de “Destacamento Blood”, um filme oportunista? Ou excessivamente violento? Ora, a fuga da realidade no meio da pandemia se tornou uma muleta para alguns, aparentemente.
“Destacamento Blood” é um projeto visceral, bruto, duro, direto e que não busca contornar a contemporaneidade através do seu retrato temporal, que se divide entre o presente e o passado, durante a guerra do Vietnã. Pelo contrário, não só escracha essa narrativa do Trump, através de um dos protagonistas, que admite ter votado no presidente, como faz o papel de iconoclasta do caos, antecipando, infelizmente, uma tragédia que ocorreu recentemente.
Pesando diretamente no corpo de um dos protagonistas, um boné vermelho escrito “Make America Great Again” (lema da campanha supremacista e com ecos xenófobos do Trump), se une ao sangue de um negro jogado ao chão, que encara a morte vinda na mão de um branco. Onde através da política de genocídio, somos obrigados a enxergar ali George Floyd e seu brutal assassinato. Menos de dez minutos depois, o espectador se vê em uma sala com todos berrando “Black Lives Matter”. O nó na garganta é…duro.
Em “Destacamento Blood”, Spike Lee se utiliza da narrativa do Vietnã para trabalhar uma proposta eugenista da História, de embranquecimento. Nos apresentando a heróis de guerra, todos negros, que retornam ao país para buscar o corpo de um dos homens do destacamento. O retorno é uma terapia de choque. Traumas, os crimes cometidos pelos norte-americanos, medos se materializam, verdades chegam à superfície etc. Ácido e irônico, a festa que se inicia, com a temática de “Apocalypse Now”, termina com um jovem vítima de minas terrestres, sem perna, pregando uma peça nos norte-americanos, jogando bombinhas em volta deles, os mesmos, pulam imediatamente no chão. A guerra étnica, de não brancos, que os EUA provocou é bem representada pelo longa de Spike Lee, pois nos coloca em uma situação de repensar algumas das imagens propostas pelo diretor, como o fuzilamento de um negro por vietnamitas. E esse exercício de re-trabalhar esse imaginário da guerra é atribuído também ao arquivo utilizado aqui, com falas do momento, uma contextualização política, uma proposta que evita passar pano pros norte-americanos e acima de tudo, a recusa de esbranquiçar a História.
E se o cinema é palco da discussão acerca da História e da política, Spike Lee compreende o cinema como uma auto-referência de registros, não à toa vêm trabalhando o arquivo de maneira isolada na tela, mas de forma complementar ao todo. Em contrapartida, se ocupa de congregar a própria história do cinema americano, em seus projetos, com referências cinematográficas claríssimas aqui, de Fuller a Stone. Mas a melhor referência possível, aqui presente, é a do próprio Spike, onde ele se auto homenageia em um de seus planos finais, em uma elipse de uma beleza fulminante.
Um breve incômodo acaba surgindo, ao compreender uma possível leitura de reconciliação em todo o âmbito político que se refere à guerra. Mas podemos encarar isso como uma esperança de que haja um lugar para o negro na América e na História. Ou melhor, que este lugar seja justo, que não esteja apenas direcionado à sete palmos.
Assim como alguns brasileiros sonham em poder enterrar seus filhos, “Destacamento Blood” tenta desenterrar a verdade, para que os negros mortos no Vietnã e nos EUA, possam ser enterrados de maneira digna. A trajetória é uma historicidade que transpassa a tela e Spike busca dar essa esperança, tanto em sua sequência final, como na construção que faz de todos os cinco protagonistas, e um sexto póstumo. Os cincos são brilhantes, mas o monólogo de Paul, é de um potência ímpar na história do cinema.
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“Ah sim, a América nunca foi a América para mim, mas eu juro, a América ainda será!” Martin Luther King Jr. parafraseando Langston Hughes.
Após os últimos acontecimentos nos EUA, é difícil manter a esperança com o futuro, mas se Spike costura passado e presente de maneira tão sólida, é porque permite o espectador sonhar com esse futuro, com essa América e com os grilhões no chão. O cinema respira, a vida não.