Depois da Vida
O Portal
Por João Lanari Bo
Festival de Toronto 1998
“Depois da Vida”, o segundo longa-metragem de ficção de Hirokazu Kore-eda, lançado em 1998, é um magnífico exercício que articula estilo jornalístico a uma fantasiosa narrativa, vida após a morte. Recém-falecidos são entrevistados para elegerem os momentos mais gratificantes de suas vidas, aqueles em que realizaram seus desejos. Em seguida, o precioso instante é recriado em estúdio, devidamente cenografado, iluminado e interpretado. Memória e deleite.
Os críticos de “Depois da Vida”, à época de seu lançamento em 1998, saudaram o espírito despretensioso de amor ao cinema que transparece no filme. Não-atores, que narram suas memórias reais, e atores, que atuam de acordo com o roteiro ficcional de Kore-eda, encontram-se em uma situação sui generis: imediatamente após a morte, os personagens entram em um ponto de parada onde têm vários dias para selecionar uma memória “mais significativa e valiosa” de suas vidas. Uma equipe de burocratas atenciosos trabalha para recriar as memórias do recém-falecido em um filme, com luz, câmera e ação – posteriormente, a exibição da memória recriada culmina com o fim da estada dos “passageiros” nesse espaço de transição.
Cada grupo de “mortos” permanece uma semana, elaborando, junto aos funcionários da repartição, a escritura e a produção do momento escolhido. Após a projeção, eles partem para a eternidade, levando consigo apenas a memória selecionada. A história é simples e a cinematografia é igualmente minimalista. A maior parte do filme se passa em escritórios, em cenários modestos, com personagens discretos em trajes comuns. Variações de gênero e idade tornam o grupo razoavelmente representativo – em contraposição aos “produtores”, mais homogêneos em termos de idade. O objetivo não é recriar as histórias em si, mas capturar o sentimento que as memórias representam. Tudo se passa de forma natural, como nos filmes de Ozu – inclusive no uso dos pillow shots.
Nesse exercício de metalinguagem metafísico, não há a recorrência dramática habitual da morte como nas narrativas ocidentais, de matriz judaico-cristã. Como dizem os manuais sobre cultura japonesa, a “jornada da alma” tende a ser enfatizada como ritual, e não como fim, e a continuidade coletiva importa mais do que a transcendência individual. Essa desdramatização da morte não implica em anulação do luto: de alguma forma, o exercício a que se submetem os “transeuntes” os capacita a uma assimilação da ausência após a morte, um trabalho de recomposição interior eventualmente doloroso, mas recompensador.
“Depois da Vida”, na sua simplicidade, convida o espectador a acompanhar incursões em torno de pequenos detalhes na existência daquelas almas. A representação do espaço entre a morte e o que quer que venha a seguir — não como um plano espiritual, mas como um escritório administrativo situado em locais sem nenhum traço de modernidade – reproduz uma estrutura burocrática, com hierarquias e subordinações, espelho da ordem social. Numa sociedade onde a hierarquia é internalizada desde cedo, onde qualquer decisão deve, em princípio, ser sancionada por instância superior, não é surpresa que a antessala do além da vida seja encenada desse modo.
Espaço burocrático que não elimina confrontos emocionais, como quando um jovem membro do staff descobre uma conexão entre ele e um recém-chegado idoso. Este, narrando uma experiência de um amor jovem de longa data, impacta profundamente o interlocutor, induzindo-o a uma percepção agridoce de si mesmo. Os funcionários que recebem os “viajantes” foram escolhidos para trabalhar na estação intermediária, em vez de passar para a próxima etapa, como todos os outros. Isso não os isenta de interações sensíveis, pelo contrário.
Kore-eda filmou centenas de entrevistas com pessoas comuns no Japão para finalmente selecionar os que entrariam no filme. As entrevistas, captadas e editadas como se fosse parte de um documentário, trazem memórias reais e ficcionais – cabe ao espectador eleger, na aparição expressiva de rostos e gestos, aqueles que possuem alguma ramificação no real. O que não significa que tenham mais ou menos credibilidade – embora haja muitos personagens no filme, cada um é único e insubstituível.
Passadas quase três décadas de seu lançamento, é inevitável uma sensação de obsolescência com a visão dos arquivos de videocassete ou celuloide inseridas nas imagens, no momento em que o streaming digital domina o consumo audiovisual. Também não há celulares ou redes sociais. As conexões, nesse portal tão próximo e tão longe, são intensas e efêmeras, como no cinema.