Dente Canino
A primeira dentição
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2009
“Dente Canino”, de 2009, foi o primeiro longa do grego Yorgos Lanthimos de repercussão internacional – levou o prêmio principal da prestigiosa mostra Un Certain Regard, em Cannes – e funciona como uma espécie de primeira dentição da carreira desse diretor ousado e original, que não hesita em subverter as expectativas da audiência. Mas, o que seria a primeira dentição para um cineasta? Os psicanalistas dizem que a imago do seio materno domina toda a vida humana – no aleitamento, no abraço e na contemplação da criança, a mãe recebe e satisfaz o mais primitivo de todos os desejos. Eis que surge a dentição: com ela, a possibilidade do desmame, pois a criança sente necessidade de morder tudo o que tiver acesso à boca (objetos e o próprio seio), quando ainda está sendo amamentada. Freud chama de oral essa fase, ou canibalesca: a mordedura é a primeira pulsão agressiva, e a maneira como for permitida ou não pelo objeto de amor é da maior importância.
Assistir a “Dente Canino” assemelha-se a essa experiência radical, se aceitarmos o jogo metafórico proposto acima como instrumento de aproximação à obra de Lanthimos. Esse filme “morde” nossa boa consciência de espectador, aquela que está acostumada a corretivos estabilizadores quando exposta a situações estranhas, desconexas e absurdas. Definitivamente, não é o caso do diretor grego: ele não dá trégua a eventuais pulsões tranquilizadoras. Imagine-se uma família relativamente abastada, no subúrbio de Atenas, isolada à força de tudo e todos, a não ser o patriarca, que sai todo dia para trabalhar. Sua mulher – cumplice do projeto – permanece em casa para, em tese, monitorar duas filhas e um filho, com aparência, digamos, de pós-adolescentes. Um muro impede fuga e visão do exterior: qualquer signo que vem de fora, um gato, por exemplo, é transfigurado – é uma besta demoníaca que vai devorá-los. Uma rodovia, aprendemos, é um vento muito forte. Quando uma das filhas pede à mãe que passe o telefone à mesa de jantar, ela entrega o saleiro. Entre insanidade e delírios – entendidos como estado de alteração mental que faz com que indivíduos apresentem visões distorcidas da realidade – construímos a diegese do filme.
Diegese, como tantas outras, é uma palavra de origem grega: significa o ato de narrar ou descrever uma história, seja no teatro, no cinema ou literatura. Adentramos nessa narrativa cercados de objetos e personagens à primeira vista reconhecíveis, mas deslocados do eixo que serve de orientação para suas existências. Como todo projeto obsessivo, porém, ruídos ameaçam a saúde do sistema – ruídos sexuais, sobretudo. O filho é encorajado a satisfazer seus novos impulsos pelo pai, que paga a uma funcionária de sua fábrica para manter relações sexuais com o jovem púbere. A libido contagia a atmosfera, e uma das filhas é estimulada a fazer sexo oral em um visitante inesperado em troca de acesso ao mundo exterior – é uma recompensa, não é um ato de liberação. A outra filha engaja-se em trocas de favores também sexuais por objetos mundanos (videocassetes) com a funcionária-que-faz-sexo-com-o-irmão: a coisa degringola quando as filhas são chantageadas pela funcionária. Você não pode mais confiar em ninguém, lamenta-se o chefe da casa.
A “mordida” de Yorgos Lanthimos alcança maior efetividade na medida em que toda excisão narrativa – ações e reações articuladas por uma lógica non sense – são produzidas mecanicamente, sem qualquer esforço de acumulação sentimental ou outro atributo que permita ao espectador identificar seres humanos “normais”. “Dente Canino” é um filme anti-humanista – à medida em que os acontecimentos se sucedem, nossa razão espectatorial simplesmente desvanece-se. Para o diretor, claro, trata-se de manter o comando das ações sem fazer, em nenhum momento, algum tipo de concessão que sugira a estabilidade tranquilizadora do entretenimento audiovisual. Todos esses comportamentos são observados de maneira neutra e crua, sem floreios dramáticos que possam distorcer ou amaciar a visão – mas ao mesmo tempo carregados de uma dramaticidade esquizofrênica, para usar um termo médico de ressonância imediata.
A carreira de Yorgos Lanthimos decolou depois de “Dente Canino”, do cinema grego independente às grandes produções de Hollywood. De alguma forma, abstraindo orçamentos e estéticas subjacentes a essa linha evolutiva, seus filmes mantém algumas premissas básicas – personagens que se comunicam com falas abstrusas, mas naturais, eventualmente inexpressivas. E cruéis: finais felizes, só depois de atravessar o inferno.