Deixando Neverland
Terra do Nunca
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2019
“Deixando Neverland”, o documentário de Dan Reed finalizado em 2019, com quatro horas de duração em dois episódios, é devastador. “Neverland” é o rancho do célebre Michael Jackson, situado no Condado de Santa Bárbara, na Califórnia – comprado em 1988, foi dele até sua morte, em 2009. Em 2005, entretanto, o cantor deixou a propriedade, logo após sua absolvição das acusações de abuso sexual infantil, e nunca mais retornou. Somente em 2020 um amigo próximo da família, o bilionário Ronald Burkle, comprou o rancho por 22 milhões de dólares. Pedofilia: transtorno caracterizado por fantasias, desejos ou comportamentos sexualmente excitantes, recorrentes e intensos envolvendo crianças (habitualmente de 13 anos ou menos). “Neverland” – a “terra do nunca”, onde Peter Pan recusava-se a crescer – funcionou, na cabeça atormentada e perversa de Michael, como materialização cenográfica do espaço de desejo.
Jackson foi objeto de investigações por molestar crianças já em agosto de 1993 – teriam sido quatro, incluindo um garoto de 13 anos, Jamie, mencionado pelo nome e fotos em “Deixando Neverland”. À época, a polícia de Los Angeles não encontrou prova incriminadora de abuso, a despeito das acusações. Pouco tempo depois, a revista Vanity Fair publicou testemunhos de Jamie e família, quando Jackson, argumentando sobre dormir na mesma cama com o garoto, teria dito à mãe:
Por que você não confia em mim? Se somos uma família, você tem que pensar em mim como um irmão. Por que me fazer sentir tão mal? Isso é um vínculo. Não é sobre sexo. Isso é algo especial.
Não era novidade para ninguém que o Rei do Pop se comportava, digamos, de forma inapropriada com crianças inocentes e indefesas. Muitas vezes as alegações eram vagas e oportunistas, algumas interessadas em arrancar dinheiro do ídolo – outras, nem tanto. Nesse mundo alucinado de intrigas que envolve o showbiz, é praticamente impossível chegar à origem dos fatos, eventualmente encobertos por “segredos de justiça”: no caso de Jamie, a Court TV revelou anos depois que Jackson fez acordo com a família de mais de 20 milhões de dólares – e, como parte do acordo, o cantor fez questão de mencionar que negava quaisquer “atos ilícitos”.
Wade Robson e Jimmy Safechuck, as duas testemunhas que vieram a público em “Deixando Neverland”, conheceram o cantor em tenras idades, 5 e 8 anos. Wade ganhou um concurso de dança imitando Jackson, na loja Target perto de sua casa, em Brisbane, Australia. O prêmio era encontrar o ídolo nos bastidores do show, quando a atração foi imediata: Michael convidou Wade para se apresentar no palco. Depois de seguidas visitas a Brisbane, dormindo na casa working class de Wade, parte da família (mãe e irmã) mudou-se para Los Angeles. Jimmy, por seu turno, foi contratado para coestrelar comercial da Pepsi, em 1987, com a celebridade – não demorou para ser convidado em turnê como dançarino de destaque. Dançar com as crianças era inspirador, dizia Jackson, desculpando-se por procurar a companhia de Wade e Jimmy.
Imagine-se famílias classe média, inseridas na esfera cultural que caracterizava os anos de 1990, onde Michael Jackson pairava como entidade divina arrebatadora e absoluta: qualquer comparação com o “resto” das atrações pop não fica de pé, como diz a sabedoria popular (talvez os Beatles, mas foi antes, outro contexto). Obviamente a mãe de Robson, ansiosa para nutrir o talento natural do filho, ficou extasiada com a aproximação. Estabelecer contato íntimo com Michael Jackson era equivalente a ingressar no Olimpo do Zeus da mitologia grega: era transcender a realidade imediata dura e mitigada dos pobres mortais. Tal como na antiga Grécia, helás, os deuses contemporâneos podem atuar como predadores para satisfazer seus desejos, pouco se lixando se provocam disrupções familiares e danos psíquicos.
Além das longas e contundentes entrevistas de Wade Robson e Jimmy Safechuck, cheias de descrições escabrosas, o documentário de Dan Reed agrega vídeos caseiros, fotos, cartas, faxes, gravações de ligações telefônicas – um farto material que adiciona circunstâncias patéticas às alegações de ambos. Claro que a predação sórdida de Michael não se limitou aos dois: foram eles, que não se conheciam, que aceitaram o convite de Reed para contar as respectivas histórias.
Em 2023, tribunal da California avalizou reabertura de casos de abuso sexual envolvendo Michael Jackson, que voltarão a julgamento. Os casos de Wade e Jimmy serão julgados conjuntamente. A família Jackson nega tudo, desnecessário sublinhar. A mesma família, chefiada por um pai abusador e uma mãe complacente, que usualmente é creditada como fonte da neurose de Michael.