Daaaaaalí!
As ideias limitantes
Por Vitor Velloso
Festival de Veneza 2023
O novo filme de Quentin Dupieux, “Daaaaaalí!”, exibido no Festival de Cinema de Veneza 2023, é uma comédia que funciona parte do tempo como uma galhofa e se diverte tanto com sua estrutura tacanha que acaba tornando-se excessiva com o passar do tempo. A estrutura narrativa é tão simples quanto efetiva: a própria ideia de trabalhar com uma entrevista como dispositivo dramático e cômico é tão objetiva que consegue prender o espectador durante a maior parte do tempo de projeção. Porém, a síntese excêntrica do personagem esbarra na ambição de trabalhar com diferentes faces — isto é, diferentes atores para interpretá-lo — e termina por explicitar a variação da capacidade cômica entre eles.
O protagonista humorístico aqui é Salvador Dalí, interpretado por Gilles Lellouche, Édouard Baer, Jonathan Cohen, Pio Marmaï e Didier Flamand. Contudo, é Jonathan Cohen quem traz uma interpretação mais absurda, conseguindo gerar humor a partir de gestos e formas de falar que se destacam em relação aos demais. Em linhas gerais, “Daaaaaalí!” é um projeto que se debruça sobre esse caráter burlesco para conseguir progredir, ainda que exagere o tom em algumas sequências — como em um trecho inteiro representado de trás para frente, com uma deformação no áudio — revelando uma tentativa de se aproximar do surrealismo da pintura de Dalí, mesmo que de forma tola. Em outros momentos, o tempo de determinada “piada” é o grande trunfo de uma cena — por exemplo, quando Dalí parece caminhar eternamente pelo corredor do hotel ainda na cena inicial, gerando uma dilatação do tempo e do humor, e já introduzindo o espectador ao seu universo fabular, de pouco realismo e relativamente acentuado.
O curioso de “Daaaaaalí!” é que, durante a primeira metade, o filme parece tão preocupado em trabalhar a perspectiva da entrevista, o ego do pintor e a figura de Judith (Anaïs Demoustier), que perde uma série de oportunidades de introduzir mais elementos surrealistas ao projeto, deixando-os em sua maioria para um exercício livre durante uma passagem que narra um sonho. Assim, tanto sua fórmula dramática quanto a perspectiva formal começam a entrar em uma espiral de repetições e saturações, e o longa torna-se realmente monótono e desagradável em determinado momento — justamente por demorar tanto a adotar uma atitude mais ousada em sua estrutura que, quando finalmente o faz, parte do público já não aguenta mais ver as mesmas piadas repetidas. A própria ideia do ego de Dalí corrompendo a realidade concreta e expondo seus medos e receios — como sua figura mais velha, que o assombra em determinadas passagens — perde o sentido e passa a ser apenas mais um elemento cômico repetitivo.
Ou seja, as ferramentas que funcionavam em um primeiro momento passam a ser um problema para o funcionamento do projeto. Com o tempo, “Daaaaaalí!” torna-se um filme mais genérico do que poderia ser, justamente por manter-se inflexível durante seu desenvolvimento inicial e só decidir se soltar quando a estrutura já atingiu seu limite. Aliás, os momentos em que a cinematografia, assinada pelo próprio diretor, decide ampliar os horizontes estéticos e representar uma pintura demonstram as possibilidades que o filme poderia ter explorado, mas que prefere deixar de lado em favor de uma abordagem mais pragmática, ainda que sólida.
“Daaaaaalí!” possui alguns momentos divertidos, especialmente quando se permite ser mais solto e enfrentar os próprios limites concretos e dramáticos de sua narrativa — seja com o corredor já mencionado, com a ligação telefônica no meio do deserto ou com a escada usada para sair de um cômodo. No entanto, acaba permanecendo em uma zona de conforto que não favorece a progressão do filme, por permitir uma série de repetições, mesmo em um tempo de projeção curto, e revela um Dupieux menos interessado nas ambições estéticas de seus filmes e mais inclinado às formulações e possibilidades da persona de seu grande protagonista.
Por fim, é um projeto que tem seus bons momentos, mas se perde nas próprias ideias, na sua falta de ambição e na sua ambição enviesada. Talvez um caráter mais direto em determinadas sequências e uma ideia formal mais consolidada, transformasse essa comédia corriqueira em algo digno de nota, mas será mais uma obra com circulação limitada e que não vai sobreviver à memória da maioria dos espectadores até o fim do ano.