Culpa e Desejo
Contra a moralidade cega dos tempos atuais
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
A realizadora Catherine Breillat é francesa. E como toda europeia enxerga a moralidade com outros olhos bem menos conservadores, talvez por sua idade veterana de 75 anos que internalizou muito mais a naturalidade que a preocupação com a onda politicamente correta. Para ela, a liberdade está desconstruir padrões. O sexo é apenas uma consequência do desejo, este sim um impulsionador necessário e vital para todo bom funcionamento de uma existência humana. Catherine experimenta linguagens, que acabam gerando burburinhos tabus nos mais tradicionais desavisados. Quem não lembra da cena de “Anatomia do Inferno” (2007) em que um casal troca fluídos viscerais de sangue em uma taça de vinho, entre outras cenas explícitas com o ator pornô Rocco Siffredi; e/ou da cena de “Uma Relação Delicada” (2013), em que a atriz Isabelle Huppert vive uma cineasta que precisa reaprender a lidar com os limites do corpo. E/ou quando participa do documentário “Salò: Fade to Black” (2001), dirigido por Nigel Algar, sobre os bastidores da polêmica filmagem de “Salò ou os 120 Dias de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini. Sim, para Catherine não há limitações humanas ao prazer.
Em seu mais recente filme “Culpa e Desejo”, exibido aqui na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, não poderia ser diferente, tampouco mais moralista ao abordar uma relação de sedução e de desejo entre uma adulta advogada e um jovem de dezessete anos (praticamente adulto). O filme quer discutir o quão “careta” nos estamos e os porquês da culpa gerada, que afeta a reputação e ficar “mal falada”; o trabalho e sua estabilidade financeira; e a possibilidade crime da prisão, visto que este adentra na seara da pedofilia e do abuso de vulnerável desta criança em questão. Tudo isso é muito bem diluído na narrativa modernizada e invertida (no quesito gênero), especialmente por sua câmera direta e em close – ora estendido para intensificar a sensação captada, ainda que evoque a atemporalidade universal de “Lolita” e “Morte em Veneza”. O filme traz também “dois pesos e duas medidas” quando dota o menor com mais perspicácia e dissimulação que os adultos. E esta adulta é uma advogada, que deveria estar plenamente ligada às consequências da Justiça e seus Julgamentos (ao lidar com vítimas, acusados e culpados). Tudo é um jogo que “brinca com fogo” e com nossas convicções morais. “Por que não podemos viver esse desejo?”, o roteiro nos pergunta.
“Culpa e Desejo” traz em seu DNA o mais essencial dos temas do cinema francês: a universalidade do amor, no mais puro e livre dos estágios, entre a aceitação comportamental de adolescentes mimados; experiências sexuais passadas narradas; e embates emocionais. O garoto não tem limites e a todo tempo tenta marcar mais território. E ela não consegue controlar a libido: flerta, articula toques, calcula permissões, imagina orgasmos. “Prove que você não é uma criança”, pergunta. Se o pai dele permitir, o menor vence. Há uma competição de autoridades. O filme quer trazer a ideia da força da juventude, que causa inveja, projeção e o querer ser e ter por insinuações mais diretas ou implícitas. Quem deseja torna-se vulnerável, imprudente, cego, obcecado, louco. Sente a vertigem de uma força dominar o corpo inteiro. Que só é plena quando se consegue. Oscar Wilde já disse que só há uma maneira de se livrar do desejo: entregar-se ao próprio desejo. Saciá-lo até não restar mais nada. Mas também ao sucumbi-lo não há mais volta. Talvez seja essa a culpa: o medo da mudança, de transformar a calmaria confortável em caos movimentado. Quanto mais, mais “bandeira” e mais proximidade do “fim”. Sim, o simples começo já desencadeia o cronômetro a seu término inevitável. Uma escolha de Sofia. Um paradoxo existencial.
O longa-metragem constrói intimidade, incômodo e iminência. De “sabonete famoso no Brasil”. De cafés, bebidas, “cerveja sem álcool”, “poetas mais importantes da Coreia” e barulho das obras. “Culpa e Desejo” também acontece por suas conversas sobre atuação honesta, hábitos, habilidades, opções, mentoria. “Ninguém lê poesia mais, mas você lê, é suficiente”, diz entre recompensas no “modo coreano” de receber “recompensas” bebendo mais forte. “O que é a vida?”, “sabedoria”, “venho dos jovens”, “apenas pule na água”, tudo aqui parece ser recados da realizadora francesa para quem assiste seus filmes. De aproveitar e parar de se preocupar tanto com os politicamente corretos da existência social. No fundo, essa intimidade só funciona para quem a vive. E nós, espectadores, principalmente como atores reais, sempre preferimos tomar mais conta dos outros do que de nós mesmos. Por isso que a mensagem de “Culpa e Desejo” é tão polêmica, porque tenta quebrar “moralidades cegas” (frase usada no filme “Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan, também aqui na mostra competitiva do Festival de Cannes 2023). Porque quer com polêmica reconstruir um mundo antigo sem Googles nos policiando contra os “males do sexo e da nudez”. Por que mostrar o corpo se tornou tão proibido? Catherine Breillat sabe muito bem como provocar e é essa a grande maestria de suas obras.