Yonlu
As tentativas-porquês de um fim
Por Fabricio Duque
Há um fato inquestionável sobre a adolescência: sua imaturidade vulnerável, que estimula uma melancolia, uma vicissitude urgente, um impulso desenfreado e uma percepção de que não há mais soluções para mínimas fragilidades, que são descontroladamente potencializadas. O tímido sentimento indefeso de perdição impulsiona crises, silêncios, agressividades e mais definitivamente radicalidades. “Yonlu” é sobre uma destas consequências fatalistas. Sobre um adolescente de dezesseis anos, músico, introspectivo, que mesmo com o apoio financeiro e emocional da família não aguentou o tranco e a própria pressão e cometeu suicídio, quase assistido em tempo real na internet. Seu pedido de ajuda poderia ter mudado o rumo da tragédia. Ao invés de receber uma contrariedade ajuda a suas ideias depressivas, foi alimentado por seres que compactuavam da mesma sensação auto- destrutiva.
Dirigido por Hique Montanari, o filme causa incômodo quando mergulha na tradução da intimidade. É uma pós-análise terapêutica. Um estudo de caso que tenta esmiuçar os porquês, os verdadeiros motivos e pistas indicativas. “Yonlu” embarca na epifania da imagem, resgatando a essência etérea da existência não mais existente. É um filme fantasma. Um necropsia da moralidade social versus à individualidade agnóstica. De um lado a culpa e a necessidade de se suportar e de aceitar a convivência com o outro. Do outro, a percepção realista da posse do próprio corpo que se auto-sustenta, mitigando amarras e pertencimento. O longa-metragem é um embate. Um confronto entre estes dois mundos antagônicos, mas que paradoxalmente se complementam principalmente pela presença do outro. Pela submissão à presença do outro, este que interfere e manipula quereres e caminhos pela imposição de outros mais “capacitados”. Aristoteles versus Jean-Paul Sartre. Caridade emocional contra a máxima de se viver plenamente na parte de dentro.
“Yonlu” é um filme filosófico e existencialista, ainda que quebre a forma com a intercalação de um anti-naturalismo mais técnico, mais formal e didático em sua narrativa, como a explicação detalhada de uma repórter e o psicanalista terapeuta. É também sobre o desespero da alma de não suportar as idiossincrasias dos próximos. É sobre o garoto Vinícius Gageiro Marques (o ator Thalles Cabral, com uma interpretação atmosférica que lembra o universo oriental da potência do sentir e a incompatibilidade de dizer palavras), mais conhecido como Yonlu, é um jovem poeta, músico e desenhista, além de ser fluente em cinco idiomas. Apesar de talentoso, ele decidiu dar fim à sua vida em 2006, depois de ingressar em uma comunidade virtual de assistência para potenciais suicidas.
O filme, com narrativa fragmentada de videoclipe, tenta entender suas possíveis causas, doze anos depois de sua “libertação”, vivendo como um astronauta de “mármore”, um prisioneiro de um submarino amarelo (referência esta à música dos The Beatles, “Yellow Submarine”). Vinícius era um ser desajustado ao mundo. Seus discursos (passionais e utópicos) pululavam críticas cotidianas a nossa sociedade, como a “súplica desesperada às distribuidoras” para manter os títulos literais dos filmes (“chega de ver filmes aleijados por título de sentido alterado”, “chega de sermos tratados como animais com trocadilhos bobos errôneos”). Vinícius reiterava exatamente o estar dos pré-jovens, com seu aguçado pessimismo e sua “cult” preservada depressão. “Hora de encolher”, “Mergulho até o fundo”, “Zumbis da morte”, tudo é sempre dito com ruídos, muita das vezes pelo anonimato hater da internet. Aqui, o protagonista consegue descansar sua solidão e viver bem ao se conectar. “Yonlu” cria a ficção científica de o colocar dentro da liberdade sem limites do mainframe, em que tudo é permitido.
É um lugar que se pode desnudar a si mesmo, possibilitando expurgar pensamentos mais primitivos e ainda desacordos. É uma fuga (muitas vezes pelo transtorno do olhar – que não enxerga ninguém à volta, mas percebe uma estética performance circense). Realidade versus mundo imaginário. De tanto não aguentar, a pessoa vai cansando de existir e tenta sair disso. Renato Russo, do Legião Urbana, desistiu e se deixou ir. É uma submissão às vozes dos outros, como as do personagem do filme “Plata Quemada”, de Marcelo Piñeyro.
Interpreta-se a intensidade. Revela-se seu transtorno dismórfico corporal. Sua aura de rock-star conjugada com a sofreguidão à moda de uma música sensorial de Sigur Rós. O filme é também um documento emocional. De sentimentalizar a projeção saudade de sua mãe. De emocionar naturalmente por fotos, desenhos animados e fitas com suas letras reais de uma excessiva sensibilidade vitimada. “Desculpe pelo descontrole”, escreve. É uma “moda suicida”. Quem não se lembra de jovens que “brincam com a morte” com a famosa “brincadeira” de asfixia. “Yonlu” é sobre o curto legado de Vinícius. Sobre sua crônica carência. “Sempre serei assim até encontrar a cura”. Esta cura que busca o outro como remédio. Sobre sua desenvoltura em transitar pela internet. Sobre sua família de estímulos intelectuais. O psicólogo tenta definir: “sofreu muito por causa da pouca idade de suportar o mundo, sem defesas seguras contra esta invasão”. “Era uma caixa de ressonância do mundo”, diz. Que às vezes, “a melancolia ia embora e sentia esperança da felicidade”. “O suicídio era porta de incêndio. Um transe. Adolescentes brincam, mas ficam no ponto da fantasia”.
O filme é sinestésico. O diretor quer que sintamos o que ele sente. A angústia. O tédio do tempo de sobra. O pouco tempo de repouso. “É sempre o outro que diz o que eu devo ser”, lamenta-se. Busca-se o despertar dos pais para a esta “crise adolescente na forma mais bruta”. Não. É impossível sairmos imunes. O espectador fica com uma sensação estranha. Silenciosa. Melancólica. Vulnerável. Que nos aprisiona nas perguntas mais devastadoramente questionadoras: “Por que? O que leva alguém a desistir da própria vida?”. Nunca entenderemos. É fato. Cruel até. Mas é verdade. Nós precisamos nos distanciar do própria história que assistimos para que possamos sobreviver e continuar com nossa vida alienada e confortavelmente projetada. “Yonlu” não é sobre morte e sim pela razão da vida. Sobre o estranhamento de não pertencer a esse mundo, sendo um “Creep”, como canta Thom Yorke na música homônima do grupo Radiohead. Alguns seguem cantando. Outros preferem interromper o natural ciclo do nascer, crescer, viver e morrer.