Vaga Carne
Slam Caviar
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2019
A adaptação para qualquer meio artístico diferente é uma traição do ponto de vista estético, não como uma questão pejorativa, aliás, a traição é parte fundamental do processo criativo, não à toa expressões que buscam caracterizar determinadas obras, normalmente, irão falar do excesso de semelhança entre as duas formas. A teatralidade é uma expressão que o cinema assemelha muito bem, não por uma questão formal, mas puramente estrutural, vezes, mise-en-scène.
E determinadas aproximações entre as formalidades criativas, rendem uma visualidade extremamente única a determinado filme ou mesmo autor. Fassbinder, Glauber, Leon Hirszman e outros, são debatidos até os dias atuais por essa questão teatral em suas obras, que criam um sincretismo concreto de uma potência ímpar. Normalmente o excesso e a visceralidade, seja ela em cena, performática ou psicológica, faz parte dessa transcriação inerente à adaptação.
“Vaga Carne” faz parte desse processo, tanto formal quanto temático. Uma luta constante em se ater ao texto original, mas dar uma nova visão acerca da peça. A experimentação tem seu processo nos primeiros minutos de projeção, onde não há imagem, apenas som. O fluxo que se mantém nos primeiros minutos é oral, e isso compreende uma parte importante da faceta narrativa, já que a oralidade, por anos, foi a única forma de perpetuar uma história.
E deste ponto de vista as intenções por trás do média, dirigido por Grace Passô e Ricardo Alves Jr. são muitos positivas, pois além de compreender a narrativa cinematográfica como diálogo direto com a população, encarna na atriz uma potência de ser, como atriz de fato e corpo em movimento, além da imagem, que trata-se de um conceito bastante visceral por si só, mas entra na questão crítica de uma sociedade que exclui, oprime e renega a mulher e negritude à segundo escalão por flacidez intelectual.
Porém, todo diálogo direto com a massa, possui a limitação cultural do povo ao qual ela se destina, dessa maneira, o lirismo se contém com pequenos-grandes obstáculos que regem a população. E a verdade deve ser dita, se o grito é proferido, que seja ouvido. E “Vaga Carne” parece querer berrar em uma sala repleta de cineastas, críticos e jornalistas.
O discurso social presente no filme possui uma potência indiscutível, por debater as questões sociais de maneira irrefreável, seja através da maternidade ou do corpo como expressão pura. Mas, toda a verve flexionada à estética e à palavra, não atinge ninguém, ou melhor, atinge, o intelectual. E a proposta que se tem ao projeto visual e textual do média, é interceptada pela própria limitação formalista que os diretores impõem.
O exercício temático e cinematográfico de “Vaga Carne”, que é projetado por 50 minutos, não é capaz de atingir os mesmos homenageados na noite de exibição do filme, quem trabalha no lixo, na polícia etc. Tornando todo o esforço criativo uma burocracia intelectual, mas que carece da alma que tanto proclama ter, que tanto defende e grita.
E, nitidamente, a inacessibilidade da obra ao público, não se mantém apenas ao cidadão comum que não está interessado nas proposições estéticas, como também a quem está. Ao sair da sessão, era possível ouvir os comentários relatando a dificuldade de imersão, exatamente pela excessiva verve que é apresentada.
O texto inflamado tem seu auge na pele de Grace Passô, ao mesmo tempo, repele seu público pelo excesso de burocracia cênica. A assombrosa lentidão que toma conta do projeto permite que o número de desinteressados aumente progressivamente durante a projeção, inclusive, nos primeiros cinco minutos. A quantidade de pessoas dormindo era elevada, mas exatamente pela falta de sensibilidade em aprender a dialogar com o cerne social mais necessário.
É claro que a peça, nem o filme é sobre esse argumento, muito menos especificamente direcionado a isso, porém, a questão está ali e ela é jogada constantemente no texto. Ainda que o som em movimento, que orbita e flutua pela mise-en-scène. sejam de uma potência única, a obra não se sustenta.
É de uma obviedade imensa os talentos jogados na tela. Há um potencial escandaloso, quase ultrajante, mas que de fato se perde com o desenrolar da obra, pelo simples fato de não conhecer seu próprio público alvo. E se minha interpretação acerca do assunto está equivocada e a intenção era de fato repelir quem assistisse, através do choque e do impacto, é ainda mais grave, já que a latitude do discurso étnico, feminino e humanista está licenciado a apenas intelectuais, que em sua maioria são parte de aristocracia ou burguesia branca. E Slam caviar todo mundo já viu demais.