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Uma Questão Pessoal

A Guerra às Cegas

Por Michel Araújo

Uma Questão Pessoal

Em se tratando da dramatização da guerra – em especial a Segunda Guerra Mundial, tão replicada e recontada na literatura e no cinema – a narrativa particular é sempre exaltada. A exuberância de uma trilha individual, quer heróica ou trágica – fruto da ascensão da narrativa clássica como modelo hegemônico no cinema –, evoca certas concepções equivocadas sobre a historicidade e as estruturas sociais ao se perder de vista que se trata de uma recapitulação dramática e não uma materialidade objetiva de fatos. E é justamente sobre essas provocações que a história do último longa dos irmãos Taviani incide.

“Uma Questão Pessoal” (2017) – integrante da curadoria da 8 ½ Festa do Cinema Italiano de 2018 – é o último longa-metragem de colaboração dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani – tendo Vittorio falecido em abril deste ano de 2018. Os italianos realizadores de “Pai Patrão” (1977) e “César Deve Morrer” (2012) trazem nesta mais recente obra – baseada no romance homônimo de Beppe Fenoglio – a história de Milton (Luca Marinelli), um jovem *partisano* (guerrilheiro de resistência anti-fascista), que parte em busca de Giorgio (Lorenzo Richelmy), amigo que acredita ter tido um caso no passado com sua antiga amante, Fulvia (Valentina Bellè). No processo imergimos numa busca por uma trilha de migalhas sem fim, a qual leva o protagonista a beirar os limites de seu dever moral e sanidade.

A obra trabalha em cima de alguns temas que subjetivam a perspectiva da narrativa, tornando claro de que se trata de um mergulho na psique quase obsessiva de Milton, a qual o distancia de suas responsabilidades e de seu juízo. A disparidade entre o tratamento de cor nos planos expoentes do passado e presente, que são respectivamente trabalhados com gamas de cores quentes e frias, incorpora uma fabulação da memória de um passado vívido e um presente estéril. Logo ao início da obra, quando Milton visita a antiga casa de Fulvia e roda um disco em uma empoeirada vitrola, há uma fusão entre presente e passado, o tempo corrente e a memória, sendo a música um elemento que transporta o jovem *partisano* para uma recordação de uma de suas visitas à Fulvia, quando mantinham um caso amoroso secreto.

Para além do trabalho de cor, visualmente “Uma Questão Pessoal” nos oferece como tema a neblina e o esfumaçamento da imagem, uma manifestação metafórica do obscurecimento perspectivo de Milton em sua busca pela verdade, o que o cega efetivamente para seus arredores. Em sua busca pelo passado, o guerrilheiro obcecado efetivamente se distancia deste, e também do presente, se tornando um elemento isolado pela neblina de sua perturbação. Simultaneamente à caçada do protagonista, descobrimos que Giorgio foi capturado pelos fascistas, e é mantido refém sob tortura. Esse conhecimento nos aponta a provocação sobre o que impulsiona Milton a procurá-lo, sendo seu motivo não uma questão de resgatar um companheiro *partisano*, mas como o título entrega com clareza, uma questão pessoal.

O momento talvez mais enigmático para a obra como um todo seja do encontro do personagem principal com um sádico mantido refém no acampamento *partisano*, o qual num acesso de loucura simula um solo de bateria de *jazz* com dois pedaços de gravetos. Milton reclama o direito ao refém – o qual, assim como os outros soldados fascistas é apelidado de “barata negra”, em vista de suas vestes escuras –, possivelmente para torturá-lo num interrogatório, e seu companheiro o concede mas reforça que o louco já não serve a ninguém. Seu exército não o quer de volta, sua família não quer de volta, e ele nem mesmo é uma fonte confiável de informações. Metaforicamente esse momento é o confronto de Milton com a ausência de razão ou fim em sua busca. A insanidade do refém reflete o fim ao qual sua caçada levará: o nada, o abismo da consciência. Ao partir do acampamento enfurecido ouvimos subjetivamente um solo de bateria gradualmente crescendo paralelo ao às cacofonias histéricas do “barata negra” que o simula.

Milton está lentamente se distanciando da materialidade e se tornando mais similar ao ensandecido inimigo, ao ponto que o ressoar do pelotão de fuzilamento sobre o fascista subitamente encerra todos os sons, assim momentaneamente trazendo nosso “herói” de volta à realidade. Porém, como testemunhamos ao final, quando este após uma tentativa de entrega suicida aos fascistas parece escapar com vida, e num ato de auto complacência mergulha novamente na densa neblina, percebemos que o amargamente nostálgico *partisano* se entrega a seu estado de espírito, e se deixa tragar pelo vazio de sua busca. “Uma Questão Pessoal”, num tom moderadamente niilista, Milton se desprende do mundo real e se entrega ao seu mundo pessoal, isolado.

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

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  • Comentário de acordo com a grandeza deste filme (por aqui pouco entendido) importante para o entendimento de nosso tempo que assiste passivo o avanço do fascismo, enquanto mergulha na neblina das questões pessoais. O filme é também uma grande reflexão sobre as falácias do heroísmo. “Triste do país que precisa de heróis”, BB.

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